Minhas primeiras impressões sobre Iemanjá e as divindades de matriz africana vieram das páginas dos livros de Jorge Amado. Lembro-me de como, ao ler ‘Mar Morto’, fui transportado para o litoral baiano, onde o mar é mais que um cenário, é um personagem vivo, pulsante, habitado pela força e pela graça de Iemanjá. Amado tinha o dom de retratar a fé do povo com uma sensibilidade rara, mostrando que os orixás não são entidades distantes, mas presenças vivas no cotidiano, na cultura e no coração daqueles que creem. Com isso, resolvi trazer algumas impressões que me vêm à mente quando passo por essa data no calendário.
Madrugada do dia 2 de fevereiro; o céu ainda carregava aquele tom de azul escuro, quase negro, e o mar parecia dormir em um silêncio profundo. Não demorou muito para que a praia começasse a acordar. Primeiro, foram os pescadores, com seus barcos balançando suavemente. Depois, vieram as baianas, com seus turbantes coloridos e saias rodadas, carregando balaios repletos de flores brancas, espelhos, pentes e perfumes. Por fim, chegou o povo: homens, mulheres, crianças, idosos, todos vestidos de branco, todos com um brilho nos olhos que nem o sol da manhã conseguiria ofuscar. Era o Dia de Iemanjá, a rainha do mar, a mãe das águas, a senhora dos mistérios profundos.
Iemanjá, orixá das religiões com base na cultura africana, é uma figura que transcende o tempo e o espaço. Ela não pertence apenas aos terreiros de candomblé ou às casas de umbanda. Ela habita o imaginário de todos aqueles que, de alguma forma, sentem a força das águas correndo em suas veias. E no dia 2 de fevereiro, essa força se materializa em uma das maiores demonstrações de fé e devoção que o Brasil, sincretista como é, pode oferecer.
A praia, naquele dia, se transforma em um grande altar a céu aberto. As oferendas são cuidadosamente preparadas: barquinhos de madeira ou isopor, enfeitados com flores e velas, carregam pedidos, agradecimentos e promessas. Cada barquinho é uma história, uma dor, uma esperança. E quando eles são lançados ao mar, é como se todas essas emoções se misturassem às ondas, criando uma corrente de energia poderosa que conecta o humano ao divino.
Mas o que mais impressiona, talvez, não seja a beleza do ritual em si, mas a diversidade de pessoas que ali se reúnem. No Dia de Iemanjá, todos são iguais perante o mar. Ali, um homem de terno e gravata pode estar ao lado de uma mãe de santo com seus colares de contas. Uma criança pode segurar a mão de um idoso, e ambos podem estar cantando juntos os pontos de Iemanjá. A fé, nesse momento, se revela como um fio invisível que une corações e dissolve preconceitos.
E é justamente essa fé que nos lembra da importância de respeitar as tradições africanas, que foram por tanto tempo marginalizadas e perseguidas, mas, que, invariavelmente, fazem parte da base sustentadora do povo Brasileiro. Iemanjá não é apenas uma divindade; ela é um símbolo de resistência, de luta, de ancestralidade. Ela nos mostra que, mesmo em meio à dor e ao caos de águas revoltas, há sempre um caminho de esperança quando voltamos à margem.
No fim do dia, quando o sol começa a se despedir no horizonte e o mar devolve alguns dos barquinhos à areia, há uma sensação de dever cumprido. As oferendas foram entregues, os pedidos foram feitos, e a fé foi renovada. E enquanto as ondas continuam a bater na praia, como se fossem o coração pulsante de Iemanjá, fica a certeza de que, enquanto houver fé, haverá esperança. E enquanto houver respeito, haverá união.
Porque, no fim das contas, o Dia de Iemanjá é sobre a capacidade humana de acreditar, de se conectar com o sagrado, de honrar as raízes que nos sustentam. E é sobre lembrar que, assim como o mar, a fé não tem cor, não tem fronteiras, não tem limites. Ela simplesmente é. E isso é poderoso.
Esta publicação também está disponível no jornal A Tribuna, na edição do dia 11/02/2025, na página A2. Você pode acessar a versão em PDF pelo link: A Tribuna – Edição 13568.
Este artigo traz uma reflexão profunda e necessária sobre identidade, pertencimento e a importância de começar as mudanças dentro de casa antes de buscar soluções externas. A analogia com a famosa frase do almirante McRaven reforça um ponto essencial: pequenas ações cotidianas podem, sim, transformar nossa realidade.
Lembrei imediatamente de Capitães da Areia, de Jorge Amado, onde vemos jovens marginalizados que sonham com um futuro melhor, muitas vezes idealizando o que está fora de seu alcance, sem perceber o potencial que têm para mudar seu próprio destino. Assim como no romance, a grande lição deste texto é que o verdadeiro crescimento vem quando encaramos nossa própria realidade e buscamos transformá-la de dentro para fora.