O inverno chega sem pedir licença. Traz consigo o vento cortante, as noites mais longas e um silêncio denso que se instala nas ruas antes mesmo do anoitecer. Para muitos, é apenas uma estação, um convite a xícaras de chocolate quente e cobertores macios, além de passeios por estâncias climáticas. Para outros, porém, o inverno é uma sentença. Uma ameaça que se agrava a cada grau a menos no termômetro, especialmente para aqueles que não têm onde se abrigar.
Os moradores de rua, já tão vulneráveis nos mais diversos aspectos, enfrentam nessa época um desafio ainda mais cruel: sobreviver ao frio. Eles são os invisíveis do cotidiano, aqueles que muitos preferem não ver, não ouvir, não lembrar que estão ali. Mas o inverno os deixa evidentes a todos nós, com sua implacabilidade. Basta uma caminhada pelo centro da cidade, pela praça ou por viadutos ao anoitecer, para notar corpos encolhidos em marquises, embaixo de cobertores surrados, tentando, a todo custo, reter um pouco de calor.
A responsabilidade primeira de proteger essas pessoas é do Estado. Afinal, a Constituição garante o direito à moradia e à dignidade humana. Mas o que vemos, na prática, são políticas públicas insuficientes, descontinuadas ou simplesmente ineficazes. Por exemplo, muitas cidades até possuem abrigos temporários, mas eles costumam ser insuficientes para a demanda. Alguns exigem documentos que muitos moradores de rua não têm; outros não permitem a entrada de animais de estimação (que, muitas vezes, são a única companhia e fonte de afeto dessas pessoas). Além disso, há relatos de locais superlotados, sem higiene adequada ou segurança.
Mas, mesmo que os problemas citados acima fossem sanados, abrigos são paliativos. O que falta são programas estruturados de reinserção social, com retorno à terra de origem da pessoa, acesso a moradia fixa, emprego e tratamento para quem sofre com vícios ou doenças mentais. Sem isso, o ciclo de exclusão só se perpetua.
Outro aspecto fundamental é acesso à saúde no inverno, pois, no frio aumentam os casos de gripes, pneumonias e outras doenças respiratórias. A população de rua, já fragilizada devido às condições de vida a que está exposta, precisa de atendimento médico acessível e humanizado, algo que muitas vezes não existe. Também se faz necessária uma fiscalização e proteção contra violência, pois, no inverno, os riscos de violência e abuso contra pessoas em situação de rua podem aumentar, seja por parte de criminosos, seja por ações arbitrárias do próprio Estado (como remoções forçadas sem alternativa digna). Tudo isso envolve, não soluções popularescas para ganho de votos, mas, estudos conscientes, com pessoas qualificadas envolvidas, para que a balança da vontade individual, gastos públicos e efetividade das ações esteja equilibrada e o resultado seja prático e duradouro.
No entanto, enquanto o poder público falha, ou age com lentidão, a sociedade não pode cruzar os braços. A solidariedade individual e coletiva pode salvar vidas. E nós, membros dessa sociedade, mesmo obtendo resultados em pequena escala, podemos ajudar, fazendo nossas doações: casacos, cobertores, meias e luvas são itens essenciais. Muitas ONGs e igrejas organizam campanhas de arrecadação. Se não tivermos roupas para doar, até mesmo um pacote de café instantâneo ou sopa enlatada pode fazer diferença. Porém, não necessariamente devemos ficar no âmbito da ajuda material; um simples “bom dia”, um olho no olho, pode significar muito para quem é tratado como invisível. Muitas pessoas em situação de rua relatam que a pior parte não é o frio, mas o desprezo. Doar-se nesse momento é ato salvador de vidas. Descobrir, na nossa cidade, por grupos que trabalham diretamente com moradores de rua, oferecendo alimentação, assistência médica e até ajuda para reinserção no mercado de trabalho fará com que possamos contribuir com tempo sendo voluntários, por exemplo, ou recursos.
Mas, não basta apenas doar. É preciso pressionar prefeituras e governos para que cumpram seu papel. Fazemos isso assinando petições, participando de audiências públicas e exigindo ações concretas, como as citadas anteriormente.
O inverno passa, mas a situação de vulnerabilidade de milhares de pessoas permanece. O que estamos fazendo hoje para mudar isso? Será que, quando o próximo inverno chegar, ainda teremos pessoas dormindo sob viadutos, ou teremos avançado como sociedade, nem que seja dando alívio parcial a esse suplício?
A resposta depende de todos nós. Do Estado, que precisa agir com urgência e eficiência. E de cada cidadão, que pode escolher entre virar o rosto ou estender a mão.
Afinal, em um país justo, ninguém deveria ter que escolher entre morrer de frio ou de abandono.
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