A GEOGRAFIA DAS CASPAS

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Josué Alencastro tinha cinquenta e quatro anos e uma coleção de derrotas disfarçadas de conquistas. Seu paletó bege, herdado de um tio falecido, carregava nos ombros uma nevasca particular: caspas grossas, escamosas, que teimavam em resistir aos xampus baratos da farmácia. Quando coçava a cabeça, gesto nervoso, tique de quem sempre calculava o próximo passo, os flocos brancos despencavam como cinzas de um incêndio já apagado.

Ele era contador num escritório empoeirado no centro da cidade, onde as contas nunca fechavam, mas ele sempre arranjava um jeito de desviar o olhar do chefe com uma piada obscena. Nas sextas-feiras, depois do expediente, parava no boteco da esquina e bebia cachaça até o dono começar a guardar os cadeiras. Era ali, entre um gole e outro, que ele ensaiava suas investidas amorosas, sempre com mulheres mais jovens, fetiche incurável seu, sempre com um sorriso que exibia dentes amarelos de muitos anos de cigarro.

Até que viu Estela.

Ela surgiu no coro da igreja matriz, voz de anjo saindo de um corpo que parecia feito de porcelana. Pele tão clara que quase translúcida, olhos castanhos grandes demais para o rosto, mãos pequenas que se agitavam quando nervosa, como se estivessem sempre rezando. Usava saias longas, sapatos fechados, e um terço no pescoço que balançava quando ela se inclinava para pegar as partituras. Josué não era homem de missa, mas naquele domingo, sentado no último banco, sentiu algo raro, quase um chamado, mas ele classificou depois como desejo e desafio.

A primeira abordagem foi um desastre. Esperou-a no portão da igreja, ofereceu carona sob a chuva: “Deus colocou você no meu caminho”— e levou um “Não, obrigada” tão seco que até as caspas dele pareceram se encolher. Mas Josué não era homem de desistir. Começou a aparecer nos cultos, fingindo interesse na fé, deixando bilhetes anônimos no banco em que ela sempre sentava: “Seu sorriso ilumina mais que as velas do altar.”, “Seus olhos são mais santos que todos os santos desta igreja.”, “Quando você canta, até os anjos param para ouvir.”

Ela os lia, corava, e os guardava na Bíblia. Sabia das intenções nada pudicas dele, da diferença de idade, dos péssimos vícios, mas a sensação de ser enfim desejada por um homem ainda era maior e fazia a pequena Estela tremer por algum motivo interno e físico que ela mesma desconhecia até então.

Depois, Josué investiu pesado nos encontros “acidentais”. Ele descobriu que ela saía da igreja às terças e quintas para visitar uma tia doente. Esperava-a no ponto de ônibus, sempre com um guarda-chuva (mesmo sem chuva), sempre com um sorriso que exibia aqueles dentes amarelados, sempre com aquela névoa incômoda nos ombros do paletó, o que causava certa ojeriza em Estela.

— “Estela, que coincidência! Vou justamente para o seu bairro.”

Ela hesitava, um instinto dizia que não devia, mas, por fim, aceitava a carona. Dentro do carro, o cheiro de cigarro e loção barata se misturavam ao perfume dela, que era uma água de colônia simples, de florais infantis. Ele falava de coisas mundanas, do trabalho, do calor, e ela respondia com monossílabos. Mas ele percebeu que, aos poucos, ela começou a olhá-lo por mais de um segundo. A primeira barreira havia sido quebrada, por mais imperceptível que parecesse ser. E isso o levou a ser mais ousado e empenhado em sua conquista.

Foi quando ele fingiu interesse na fé, sabia que ali era o caminho do êxito. Comprou um rosário novo, apareceu na missa de domingo de paletó limpo (as caspas, assim, menos visíveis), e pediu para ela explicar as orações e a liturgia para ele.

— “Eu quero me aproximar de Deus, Estela. Eu sinto isso dentro de mim, parece uma missão, algo grandioso. Mas preciso de ajuda. E não vejo ninguém além de você para isso, já temos amizade, e não conseguiria expor meus medos a mais ninguém”

Ela acreditou. Ou quis acreditar.

Foi assim que, numa tarde de quinta-feira, em que a tia doente estava sendo cuidada por outro parente, depois de meses de insistência, ela aceitou ir a um café com ele. Ele escolheu um lugar longe do bairro dela, onde ninguém os conhecesse. Pediu um vinho barato, tocou sua mão sobre a mesa, e quando ela não recuou, soube que tinha ganhado a peleja.

— “Você é diferente de todas, Estela. Você me faz querer ser melhor.”

Mentira. Tudo mentira. Algo dentro dela confirmava isso, a tal da ‘consciência’. Mas ela engoliu, assim como engoliu o vinho, as sensações eram gostosas, a do álcool e a de ser cortejada e depois veio o beijo molhado, incômodo, mas intenso, e depois o convite para o motel. Mais uma vez a tal da ‘consciência’ deu uma apitada, mas, ela já havia decidido ignora-la, e, meio altinha sob efeito do vinho, aceitou.

Ele já tinha tudo planejado. Escolheu um lugar discreto, pagou em dinheiro, estacionou longe da entrada. Foi num motel chamado Paraíso — ironia que nem ele percebeu. Dentro do quarto, o cheiro de mofo e desinfetante era sufocante. A cama rangia, as paredes tinham manchas de umidade, o cobertor era tão macio quanto uma lixa, mas ele não ligava, seu foco era enfim, devorar a presa cevada por tanto tempo.

Ela tremia diante do que estava para acontecer.

— “É a primeira vez?” ele perguntou, já sabendo a resposta.

Ela fez que sim com a cabeça, os olhos enormes marejados. Ele sorriu, achando que era coisa de menina religiosa, nervosa, que logo esqueceria os escrúpulos. Admirava seu corpinho nu e muito branco, parecia uma pintura, e pensou como era ardiloso e privilegiado, enquanto se jogava em cima de Estela, sem muito cuidado.

Mas quando acabou, quando ele viu o sangue no lençol e o rosto dela vazio, como se algo dentro dela tivesse morrido, percebeu que tinha subestimado o estrago.

— “Eu te amo, Estela. Isso foi especial.”

Mentira de novo.

Ela se vestiu em silêncio, evitando seu olhar. Quando ele tentou abraçá-la, ela encolheu-se como se seu toque queimasse. Ele insistiu em abraça-la, tocou-lhe os seios minúsculos novamente, murmurou promessas que não pretendia cumprir, e quando ela adormeceu, ele já pensava em como sumir sem deixar rastro, afinal, não aguentava mais mentir que rezava todos os dias para que ela tivesse uma boa impressão dele.

Nos dias seguintes, Estela deu uma pausa de ir à igreja. Ficava em casa, encolhida na cama, rezando em voz baixa, como se pedisse perdão por algo que não entendia direito. Sua cabeça repassava os acontecimentos, o momento do ato no motel, não conseguia distinguir se aquilo lhe dava nojo ou prazer, ou as duas coisas juntas, rememorava as abordagens de Josué, como estava tudo tão claro na sua cabeça, que ele não queria nada mais que aquilo que conseguiu, e mesmo ela, no íntimo, sabendo disso, quis pagar para ver, e agora, não dormia mais direito.

Até que a menstruação não veio.

Quando o exame comprado na farmácia confirmou a gravidez, ela caiu de joelhos no banheiro, sufocando um grito. Como assim? Numa única vez, num único deslize. Só podia ser punição divina. Foi à igreja, depois de semanas afastada, mas não para rezar e sim para desabafar com a única pessoa que ainda confiava, e que talvez pudesse consolá-la naquele momento desesperador.

A freira Irmã Teresa, uma mulher de sessenta anos com mãos calejadas e olhos que já tinham visto demais, ouviu seu choro antes mesmo de ela abrir a boca. Sentada no banco da igreja, rosário em punho, parou de balbuciar suas orações, encarou a pequena Estela, que nesse momento parecia ainda mais frágil e ainda mais pálida, e prosseguiu:

— “Filha, o que te aflige?”

Estela não precisou de mais nada para desmoronar. Contou tudo, desde os primeiros bilhetes, as caronas, as mentiras, o jogo de sedução completo, o motel Paraíso, o sangue no lençol e o resultado do exame de gravidez.

— “Ele me usou, Irmã. Como se eu não fosse nada.”

A freira não a julgou. Apenas segurou suas mãos e perguntou:

— “E o bebê?”

Estela olhou para o próprio ventre, ainda plano, e sentiu ódio. Não pelo bebê, mas por ele, por Josué, aquele cafajeste, por si mesma, por ter acreditado, mesmo com algo dentro de si dizendo-lhe para correr dali.

— “Eu não posso criá-lo, Irmã. Não sozinha. E sei que aquele calhorda nem vai olhar mais na minha cara, quanto mais assumir o filho que ele fez.”

Não era só vergonha. Era desespero. Ela não tinha dinheiro suficiente, vivia de pequenos serviços em casas de família, de vendas de bordados, nada substancial, não tinha família que a apoiasse, não tinha como encarar a cidade sabendo que todos saberiam. A sua imagem estaria arranhada para sempre, uma garota direita, que saiu com um cara mais velho e deu o golpe da barriga.

Quatro semanas depois, ela decidiu interpelar Josué. O esperou na porta do escritório, segurando um exame de gravidez como se fosse uma sentença. Fisicamente ela não havia mudado quase nada, seu corpo era pequeno, a barriga só ficaria evidente mais para o final da gestação. Ele, surpreso, mas sem demonstrar desespero ou arrependimento, a levou a um café sujo, e usou um argumento tão sujo quanto, pois falou da esposa: “Dona Marlene tem problemas no coração, vive tomando remédios, não sei quanto tempo mais dura nessa terra, não posso magoá-la com uma punhalada dessas”. Enfiou um envelope com dinheiro na mão dela, dizendo que ela usaria bem aquele recurso. Estela olhou para as notas, depois para ele, e deixou o envelope cair no chão, decidida a nunca mais falar com ele, e se possível, com mais nenhum homem.

A queda de Estela para o fundo do poço foi rápida. Ela abandonou de vez sua fé e seu lar, vivendo sem rumo, começou a dormir nos bancos da praça, recebia trocados por varrer as calçadas dos estabelecimentos ou lavar pratos. Tomava chuva e sol naquela pele tão branca. Experimentou cachaça também um dia. Queimou-lhe a garganta, mas a sensação de leveza e tontura a fez esquecer as desgraças que aconteceram em tão pouco tempo em sua vida. Pegou uma pneumonia numa madrugada fria, e no hospital municipal, perdeu o bebê. Parecia ter feito tudo aquilo para que isso acontecesse. Ninguém podia afirmar. Não teria sido mais fácil pegar, então, o dinheiro de Josué e ter procurado uma clínica? Ninguém, além de Estela, poderia confirmar isso. Uma freira segurava sua mão enquanto o médico dizia “Não foi culpa sua”, mas Estela já não ouvia. Só chorava baixinho meio adormecida dos remédios, e na sua mente, corria num campo de arbustos baixos, com o sol a pino, e um vento leve no rosto, levando pela mão uma menina de cabelos cacheados, bem branquinha, tão branquinha quanto aquelas caspas que teimavam em se soltar dos cachos da criança…

EPÍLOGO

Meses depois, Josué viu Estela num shopping. Ela estava ainda mais magra, vestindo o uniforme de uma loja de sapatos. Mas o aspecto de ingenuidade, os traços de menina de interior, o sorriso de quem um dia acreditou nas pessoas, isso era imperdível nela. Quando ele se aproximou, ela olhou para ele sem reconhecê-lo num primeiro momento, como se as dores que ele a havia submetido tivessem tido o poder de apagar parte da memória da vida dela. —“O senhor é cliente?”—e ele, pela primeira vez, não soube o que dizer. Abanou o ombro, como havia pegado a mania de fazer, disse só estar olhando, deu meia-volta e deixou o estabelecimento, mais incomodado que surpreso.

Naquela noite, voltou para casa, onde Dona Marlene, esquelética, ligada a um tubo de oxigênio, perguntou se ele tinha lembrado dos remédios. Ele acendeu um cigarro, ignorando o estado da esposa, respondeu que sim, jogou as caixinhas sobre a mesa, tirou o paletó, e uma poeira de caspas caiu no sofá.

Ele não viu. E pensava: “quando, enfim, essa mulher vai morrer para que eu tenha paz?”

Ela também não viu. E pensou: “maldito porco imundo, porque não some de vez com alguma menina dessas doentes que costuma me trair, achando que não sei…”

E ambos se deram as mãos e ficaram de olhares fixos no jornal da TV.

FINAL

“Josué nunca soube que, no dia em que entrou pela primeira vez no carro dele, ela realmente estava se sentindo atraída, e com planos de viver com ele se possível, nem que, naquela noite no motel, após ser desvirginada, Estela rezara para que aquilo nunca mais se repetisse, aquele misto de dor e invasão, sem nenhum prazer. Muito menos que, ao perder a criança, ela sentira alívio por não querer que viesse ao mundo alguém com as características imundas dele. Agora, quando via homens com caspas no ombro, ela se benzia e desviava o olhar, como quem escapa de um feitiço que quase a matou.”

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Olá, eu sou Ari Jr

Sou escritor, blogueiro e viajante. Ser criativo e fazer coisas que me mantêm feliz é o lema da minha vida.

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