Toda vez que chegamos nessa época, Piracicaba se transforma. É como se a cidade inteira respirasse um ar diferente, misturando expectativa, tradição e um certo burburinho que só quem vive aqui entende. As ruas ficam mais cheias, o Engenho Central começa a ganhar vida de um jeito especial e, se você prestar atenção, vai notar que o assunto nos cafés e nas rodas de conversa tem um tom solene: vem aí mais uma edição da Paixão de Cristo.
Cresci ouvindo sobre esse espetáculo. Primeiro, como uma coisa meio mística, um evento grandioso que fazia gente de tudo quanto é canto vir para cá. Depois, como algo que realmente me despertou curiosidade. Se você já foi, certamente se lembra da primeira vez nesse evento. Seja criança ou adulto, certamente guardou na memória as impressões, e seus olhos se perderam na imensidão do cenário. O rio que corta o fundo da paisagem, a estrutura do Engenho que parece ainda mais grandiosa à noite e aquele silêncio respeitoso do público impressiona a qualquer um. Todo mundo ali sabe que não era um teatro qualquer. É mais do que uma história conhecida: é uma tradição viva.
O espetáculo em si é uma obra-prima de dedicação. Os figurinos, meticulosamente confeccionados, transportam o público para a Jerusalém antiga. As luzes que iluminam o palco criam sombras dramáticas, enquanto a trilha sonora, composta para a encenação, envolve os espectadores em uma atmosfera quase sagrada. Os atores, muitos deles locais, dedicam meses aos ensaios, mergulhando profundamente em seus personagens para transmitir emoções que ecoam além do palco.
E há cenas que ficam gravadas na memória: o sermão da montanha, com centenas de figurantes reunidos em uma encenação que parece sair de um quadro renascentista; a última ceia, onde o silêncio da plateia é quebrado apenas pelo som do vento e do rio ao fundo; e, é claro, o momento da crucificação, que mesmo conhecido, arranca suspiros e lágrimas a cada ano.
O que mais nos fascina é como a Paixão de Cristo não se limita à essa época. Ela permeia conversas ao longo do ano, seja nos ensaios que começam meses antes, nos preparativos que mobilizam voluntários, ou nas lembranças que os espectadores carregam consigo. Há quem fale da emoção de ver um familiar no palco, quem relembre o impacto de uma cena, ou mesmo quem use a experiência para refletir sobre vida e fé.
Para muitos, assistir ao espetáculo torna-se um ritual anual, uma pausa no cotidiano para se conectar com algo maior. E mesmo aqueles que não são religiosos acabam tocados pela força artística e cultural da encenação. É comum ouvir frases como: “Não importa sua crença, ali você sente algo diferente”.
Ver um evento como esse ganhar tamanho e reconhecimento ao longo dos anos é motivo de orgulho para qualquer piracicabano. São meses de preparação, ensaios, ajustes, gente que se doa para que cada detalhe faça jus à história que se pretende contar. Ver aquela multidão, pessoas de diferentes crenças, idades e lugares, reunidas num mesmo espaço, assistindo a uma encenação que atravessa os séculos, faz-nos perceber que certas tradições não apenas resistem ao tempo, mas ganham novos significados a cada geração.
Não é só sobre religião. É sobre cultura. Sobre reconhecer que, independentemente da sua fé, prestigiar uma manifestação artística e histórica como essa é um ato de civilidade. Porque, no fim das contas, estar ali, naquela plateia silenciosa, olhando para o palco iluminado, sentindo a energia daquele momento, nos faz lembrar que certas histórias não pertencem a uma única crença, mas a todos nós.
E, ano que vem, quando chegar de novo essa época, lá estaremos nós. Porque certas tradições fazem parte da gente. E a Paixão de Cristo em Piracicaba é mais que um espetáculo — é um pedaço da nossa identidade, que nos acompanha muito além das noites de Sexta-Feira Santa.
Esta publicação também está disponível no jornal A Tribuna, na edição do dia 08/04/2025, na página A3. Você pode acessar a versão em PDF pelo link: A Tribuna – Edição 13614.