Como meu gosto musical, além de eclético, é exótico, eu admito sim gostar das músicas “lado A” de Chico Buarque, mas, tem uma delas, totalmente “lado B”, gravada em 1981, composta somente por Chico Buarque, de nome “A Voz do Dono e o Dono da Voz” integrante do LP “Almanaque” que vendeu modestas 400 mil cópias[1] (se você comparar com Rita Lee, que um ano antes havia vendido 1 Milhão de cópias só no Brasil do seu LP Lança Perfume). Ali, o famoso malandro não compôs apenas uma canção; ele teceu uma parábola sobre amor, poder e traição. Em “A Voz do Dono e o Dono da Voz”, a relação entre o “dono” (o poder) e a “voz” (a arte, a liberdade) é retratada como um casal em crise — um divórcio anunciado sob o som de um vinil arranhado.
A música começa com uma ironia sutil: “Até quem sabe a voz do dono / Gostava do dono da voz”. Era um casamento de conveniência, como tantos outros. O dono controlava a voz, a voz se deixava prensar em acetato — um disco, um produto — e girava para o mundo como um prato servido. A metáfora do vinil é genial: a arte reproduzida em massa, mas também a fragilidade do material, que se desgasta com o uso.
Os versos “Casal igual a nós, de entrega e de abandono / De guerra e paz, contras e prós” poderiam descrever qualquer relação humana, mas aqui ecoam o jogo entre opressor e oprimido. A voz se entrega, o dono a abandona. Fizeram “bodas de acetato”, como nossos avós, numa alusão a tradições que perpetuam hierarquias.
O conflito surge quando a voz, cansada de ser instrumento, sonha com liberdade: “Sonhou se desatar de tantos nós / Nas cordas de outra garganta”. Ela quer novos amantes, novos donos, novos brilhantes (a fama? o dinheiro?). A voz, antes submissa, torna-se “louca”, “rouca”, e finalmente infiel: “A voz foi infiel trocando de traqueia”.
Aqui, Chico Buarque expõe a hipocrisia do sistema. O dono, que sempre controlou a voz, perde o controle quando ela resolve cantar por conta própria. E a reação dele é patética: “Minha voz, se vós não sereis minha / Vós não sereis de mais ninguém”. É a ameaça clássica do tirano que, ao ser abandonado, prefere destruir o que não pode possuir. Até parece o clássico namorado novo ameaçando a moça que não quer mais continuar o relacionamento.
O clímax da narrativa acontece na “assembleia ateia” — um tribunal sem deuses, onde a voz é julgada por sua rebeldia. A situação é “atroz”, porque revela a verdade nua: a voz nunca pertenceu ao dono; ele apenas a sequestrou. A traição da voz não é moral, mas política. Ela não trocou de dono; escapou.
No final, o dono “foi perdendo a linha”, “perdendo a luz”. Ele definha, mas a voz — agora livre — não morre. Ela se reinventa, mesmo que à custa de novos algozes. Se ela queria liberdade plena, aprendeu aí que isso é utópico. A canção não tem um final feliz; tem um final real. A voz nunca será totalmente livre, mas também nunca será novamente apenas “a voz do dono”.
Em 2025, a música ressoa diferente. Quem é o “dono” hoje? Os algoritmos que moldam discursos? As plataformas que monetizam a arte? A voz ainda é prensada, mas agora em bits, não em vinil. Até ainda se prensa parte ‘das vozes’ em vinil, mas isso não dá lucro para os grandes empresários e aplicativos de ‘streaming’. E ainda assim, como na canção, ela insiste em escapar, rouca, mas resistente. Chico nos lembra: a voz pode ser negociada, traída, roubada — mas nunca calada. E, no fim, é o dono quem acorda sem palavras, enquanto a voz, mesmo ferida, canta outra história.
[1] FONTE: https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=100439_12&pagfis=17626
Nota: É importante dizer que a expressão “a voz do dono” foi retirada do lema da gravadora RCA Victor (aquela do cachorro ouvindo o som). Outra informação interessante, é que a última frase da canção é uma paráfrase do texto “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, de Juracy Magalhães, que foi ministro das relações exteriores entre 1965 e 1967. Havia um grande interesse em alinhar as linguagens dos EUA e Brasil.[2]
[2] FONTE: https://camiladevila.medium.com/momentosmusicais-1-ad574e3cfee2