ANSEIOS, PARTE 02

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– Eu ficaria muito feliz se me conseguisse um emprego lá onde coordena, o salário onde trabalho é baixo demais, tenho certeza de que poderá me ajudar muito com isso. – Sugeri ao amigo que chamaremos de Evandro.

– É… eu imagino que, sendo mãe separada, o pai sem muito contato, e com o gênio bem difícil de lidar, como me contou, você anda passando por maus bocados. Mas não foi bem isso que eu tinha em mente. Bom, sejamos diretos: eu te achei uma garota muito bonita desde que te vi. Não vejo problema nenhum em te ajudar a sair dessa situação, e em contrapartida, você também ser uma boa garota comigo quando sairmos de novo como estamos aqui, para jantar, ou mesmo viajar quando conseguir espaço na sua rotina. Acho que podemos ser bons amigos assim, que suprem um a necessidade do outro.

Eu havia entendido muito bem o que ele queria dizer com isso. Sofrer assédio é algo que toda garota se acostuma desde quando os seios começam a despontar na camiseta, isso ainda muito jovem, então, não era novidade nenhuma receber uma cantada. Porém, a forma polida e a proposta eram diferentes das anteriores. A loja de cosméticos me colocava diante de todo tipo de homens, desde paupérrimos com poucos dentes na boca onde eu era um sonho de consumo distante, a senhores que me olhavam com gulodice, mas cheio de receios de se chegar a mim e serem escorraçados, mas, até então, os homens mais bem sucedidos que eu havia conhecido, ou eram solidamente casados e nem olhavam do lado, ou eram os amigos do meu pai, que eu via me comerem com os olhos, mas, conhecendo a peça, jamais tentaram algo mais ousado, então, me fingi de desentendida e dei corda para ele:

– Não entendi… então, não estamos falando de emprego? Como assim, viajar comigo e eu te ajudar? Infelizmente, não vejo como, na situação em que estou, poder te ajudar de alguma forma.

– Claro que pode, minha querida. Nessas viagens que faço, sempre me encontro sozinho. Esses hotéis são frios, me bate uma tristeza nas noites que volto para ele, depois dos meus compromissos, você estar lá, me fazer companhia, com certeza seria de grande valia para mim. E você ainda aproveita para passear, quem sabe, comprar roupas novas, uma bolsa, pequenos agrados em troca de você também me agradar. Você só ganharia com isso, tenha certeza.

– Sei, isso está um pouco estranho, assim, do nada, você me oferecer pra ir viajar, comprar coisas, só em troca de estar lá com você? Não está fechando essa conta.

– Ora, sua companhia é importante, – Ele riu, entendendo que não sou tão bobinha quanto aparento ser – estar com pessoas leves, bonitas, inteligentes, faz a gente se sentir melhor. Agora, claro, vai que você me acha um homem interessante também e queira aprofundar mais esse contato que estamos tendo, também podemos, para mim seria perfeito, não sei como encara isso.

– Ah! Sim, mas, não, não estou pronta para relacionamentos, a separação deixou algumas marcas que não desapareceram, acho melhor eu ficar quietinha mesmo no meu canto e mandar uns currículos para tentar uma recolocação profissional mais vantajosa para mim.

– Poxa vida, quem está falando de relacionamento, minha querida? Eu também sou uma pessoa com vários compromissos, agenda lotada, tenho pouco tempo para dispor para uma namorada, seria até cruel de minha parte buscar alguém que eu não possa no momento tratar com todo carinho e atenção. Estou falando de, dando certo para os dois, fazermos companhia um para o outro, desfrutarmos de bons momentos, e ainda nos ajudarmos. Bom, pensa com carinho, vou chamar a conta aqui. Até que se decida, aceite esse presente.

E não é que ele, muito discretamente, puxa minha mão e coloca um maço de notas nela. O valor era equivalente a um mês de salário meu, aquilo iria me tirar dum sufoco daqueles, os móveis, as dívidas que fiz, o aluguel do apartamento, eu estava salva naquele mês por um ato de alguns segundos. Pensei em me fazer de ofendida, em dar-lhe um bofetão, porque no fundo eu já sabia onde aquilo iria acabar, e eu não sabia ainda se teria estrutura psicológica para levar aquilo até o final, mas, na mesma fração de segundo, também pensei nas contas, no alívio de não ter de recorrer ao meu pai, e, fingindo espantada e tímida ao mesmo tempo, só disse:

– Meu Deus, Evandro, tudo isso, eu vou te devolver, claro, só precisamos ver em quantas vezes pode receber…

– Acabei de te dizer que é um presente, poxa, presentes não se devolvem, vou me ofender se disser isso de novo. E saiba que pode ganhar outros, só pense com carinho na minha proposta. – Instintivamente, me olhou com desejo, como que me imaginando nua na sua frente, mas depois, disfarçou.

Eu só conseguia sorrir, agradecida. Ainda chamou um carro de aplicativo para me deixar em casa pois estava com um compromisso marcado naquela hora e não poderia me acompanhar. Na despedida, deu um beijo de leve na minha bochecha, me segurando pelos ombros, tentando demonstrar um carinho despretensioso e paterno, coisa que eu sabia muito bem ser um teatro, mas, como ali todos éramos personagens, ofereci de bom grado a face, para ele se sentir melhor.

Rebelde, mãe solteira, separada, e agora, prostituta. Essa era a ‘menininha do papai’ que me tornei. Porque eu poderia mentir para todo mundo, menos para mim. Minha criação era clara: que usa do corpo para ganhar dinheiro era prostituta. Mesmo ele afirmando que ‘só queria companhia’, eu já era adulta o suficiente para saber que ninguém dá um mês de salário da pessoa por simples amizade ou carinho. Aquela cobrança viria, e eu sabia de que forma. A pergunta era: até que ponto eu estaria preparada para isso? Até que ponto meu psicológico, que já não era dos melhores, iria se destruir ainda mais quando eu quebrasse mais uma regra de ouro que meu pai tinha me deixado como valor? Em contrapartida, aquilo também poderia ser a chave da liberdade, de nunca mais ter de dar satisfação nenhuma aos meus pais, de, inclusive, trazer Sarah para morar comigo em definitivo, e esfregar na cara deles que sim, eu já sabia lavar minhas calcinhas, as fraldas de Sarah, tinha dinheiro para comprar ambas sem pedir para eles, e que seríamos, enfim, uma família completa em nós duas, sem depender mais de caridade e boa vontade de avós que fariam, mas jogariam na cara tudo o que fizeram, numa cobrança que doía muito mais do que ir para a cama com um homem pelo qual eu não sentia atração física, mas que me proporcionaria independência.

Com a mente inquieta assim, busquei a garrafa de vinho barato que eu tinha deixado na geladeira. Ainda tinha mais que a metade. Enchi um copo e virei quase de um gole só. Enchi outro e daí fui tomando mais devagar, só para ir relaxando, o que realmente aconteceu. Adormeci. Sonhei, e no sonho uma multidão de pessoas corria atrás de mim, me xingando e tentando me acertar com objetos, eu fugia com dificuldade, porque estava usando uma sandália de salto caríssima, e não me passou em nenhum momento descalçá-la para ser mais fácil. Até que me alcançaram, e começaram a rasgar meu vestido de grife enquanto eu ouvia os berros de ‘vagabunda’, ‘piranha’, ‘vergonha’, e eu tentava reagir, me desvencilhar, até que me apertaram o pescoço, os rostos eram embaçados, irreconhecíveis, até que foquei naqueles braços fortes e distingui a feição do meu pai me enforcando. Sua voz não saía, mas eu via seus lábios mexerem e formarem a palavra ‘prostituta’, e por mais que eu tentasse sair dali, não conseguia. Ao virar o rosto para o lado, vi minha mãe, chorando, com uma Bíblia embaixo do braço, estendendo a bolsa de marca que eu havia dado a ela, como que me devolvendo, e dos seus lábios saíam as palavras ‘desculpe’, ‘ingrata’, tudo meio embaralhado, como é comum aos sonhos. Até que vi alguém se aproximando velozmente com um pedaço de madeira em punho, era pequena e sem feição definida, mas dessa eu ouvi perfeitamente o som saindo da boca: por quê? Um porque raivoso, cruel, de quem foi ferido, traído. Identifiquei essa mulher pequena, roupas lindas, caras, um colar no pescoço de pérolas, anéis nos dedos, e quando levantou no ar o pedaço de pau para me golpear fatalmente, me encarou e eu a identifiquei: Saraaaaaaahhhhhhhh, não, filha, não – gritei a plenos pulmões…

Acordei, em sobressalto, coração parecendo que batia na minha garganta, testa molhada, corpo retesado, como se os nervos estivessem prontos para uma fuga ou reação imediata. Despertei de vez, fui controlando a respiração, os batimentos cardíacos foram voltando ao normal. Levantei-me da cama para ir ao banheiro, ainda um pouco zonza, pelo sonho e pelo vinho, mas, já refeita da experiência tão desagradável exatamente por beirar à realidade. Decidi me deitar, uma boa noite de sono com certeza me faria nova para mais um dia de realidade dura. Antes de apagar de vez, resolvi dar uma olhada no celular, só para ver que horas eram e checar se tinha alguma mensagem dos meus pais, falando da Sarah. Não. Só tinha uma nova do Evandro:

“Boa noite, tudo bem? Nesse final de semana terei um compromisso no Rio de Janeiro. Direcionei para que fosse no sábado pela manhã, para poder te levar. Acho que consegue uma liberação do seu serviço na sexta-feira, não? Tente me avisar o mais cedinho que ler essa mensagem, para eu já reservar sua passagem. Será um prazer imenso ter sua companhia nesses dias.”

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Olá, eu sou Ari Jr

Sou escritor, blogueiro e viajante. Ser criativo e fazer coisas que me mantêm feliz é o lema da minha vida.

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Marcelo Cappelletti
Admin
6 meses atrás

Uau! Que texto incrível! “Anseios – Parte 02” é uma leitura que toca o coração. O Ari tem um jeito especial de falar sobre sentimentos que todos nós temos, mas às vezes é difícil explicar. As palavras são bonitas e fazem a gente pensar sobre a vida. É como se ele conseguisse ler nossos pensamentos e colocá-los no papel. Dá vontade de ler várias vezes para entender melhor os nossos próprios sentimentos. Parabéns ao Ari por criar algo tão bonito e fácil de se identificar!

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