Nunca imaginei que precisaria de um profissional de terapia. Sempre fui do tipo que resolvia tudo sozinha, certamente, reflexo do exemplo do meu pai, mas a vida me mostrou que às vezes, precisamos de ajuda. Busquei algumas indicações com amigas e os contatos foram chegando, até que me decidi em falar com a Dra. Laura. Tinha boas referências dela e os valores também eram acessíveis, afinal, não queria viver às custas de Evandro, e resolvi evitar ao máximo o contato em casa. Queria depender financeiramente somente de mim, e isso restringia muito meu campo de escolha. No dia combinado, lá fui eu para a primeira sessão.
A Dra. Laura era uma mulher que aparentava extrema competência, emoldurada por uma beleza discreta. Seus cabelos castanhos, presos em um coque elegante, enfeitavam um rosto delicado e expressivo. Seus olhos, de um castanho profundo e penetrante, pareciam ter a capacidade de ler minha alma, mesmo sem eu ter dito uma palavra sequer, além de bom dia. Usava óculos de armação fina que realçavam sua inteligência e curiosidade. Sua voz era suave e melodiosa, como um bálsamo para a minha alma ferida. Havia algo de enigmático em seu sorriso, como se ela guardasse muitos segredos. Fiquei muito impressionada, e algo me dizia que ela havia percebido isso prontamente em minhas feições. Ela me deixou muito à vontade, dizendo que eu poderia tanto apenas sentar-me no sofá, em frente a ela, ou deitar-me no divã, onde não teríamos contato visual, e eu, como nunca tinha feito aquilo, fiquei um tanto desconcertada de me deitar, talvez por ver aquilo sempre em filmes e achar clichê, e optei pelo sofá, de frente com aquela bela terapeuta. Ela disse para eu começar a contar-lhe o que quisesse, sem uma ordem específica de tempo ou assunto. Eu estava muito arredia, então, fui falando de amenidades. Ela somente ouvia com resignação, vez por outra, me encarando, mas, quase sempre, com o olhar perdido e melancólico, como se nem estivesse ali na sala prestando atenção ao que eu dizia. Ao terminar o tempo, ela me avisou disso, marcou o horário da próxima semana, e se despediu de mim. Sem um remédio. Sem um conselho. Sem nada. Aquilo que era terapia? Aquela porcaria? Saí muito frustrada, achei que iria embora dali com meus problemas todos resolvidos, criei expectativas, e nada. A não ser uma leveza que há tempos não sentia, como se eu tivesse botado para fora algo que me estufava e embrulhava o estômago, tal como eu fazia com minhas amigas do colégio, na infância e adolescência.
Enquanto isso, Evandro me pressionava, muito mais ainda quando soube que eu estava me tratando. Perguntava por que eu não o avisara, pois ele conhecia ótimos profissionais, que poderia ter arcado com as despesas das consultas etc. Era nítido que ele não gostava de ver que eu estava me fortalecendo, me curando, criando maior independência, e que estava buscando ajuda fora das asas e do domínio dele. A cada passo que eu dava em direção à solução dos meus traumas, ele se tornava mais possessivo e controlador. A situação se tornou insustentável. Assim, chamei ele para um café, numa padaria bem aconchegante que a gente gostava de frequentar aos domingos de manhã, pois precisava dum local neutro para dizer tudo o que passava na minha mente sem maiores distrações…
– Evandro, precisamos conversar.
– Claro, meu amor, o que foi? O que precisa de mim, pode se abrir.
– O que eu realmente preciso é que você entenda que as coisas entre a gente não estão funcionando mais como eram.
– Não entendo o que você quer dizer com isso. Tudo está bem, não está? Está faltando algo para você ou para a Sarah?
– Não, não está. Mas, não é disso que estou falando. Eu preciso do meu espaço, da minha liberdade.
– Liberdade? Mas para quê? Você tem tudo o que precisa aqui comigo. O que realmente quer? Sair com outro homem? Nós vamos aonde quer, fazemos tudo que você quer, não entendo que liberdade é essa que você não tem.
– É justamente por isso que não está funcionando. Fazemos tudo, desde que você esteja junto, você organize, você coordene. Eu me sinto sufocada. Preciso crescer, evoluir e você não está me permitindo isso, porque quer que eu fique eternamente debaixo de suas asas e proteção, igual a um Peter Pan que não cresce nunca.
– Não me diga que é por causa daquela terapeuta onde você vive enfiada! Eu tinha certeza de que ela iria colocar essas ideias tortas na sua cabeça. Eu avisei que era besteira ir lá. Você devia me ouvir mais, confiar mais em mim. Se tivesse me deixado escolher seu terapeuta, tenho certeza de que não estaríamos discutindo isso aqui agora.
– Viu só como você é? Chega a beirar a ignorância quando quer. Não é por causa dela, não tem nada a ver. Por sinal, depois de começar o tratamento com a Dra. Laura, minha cabeça melhorou consideravelmente, até minha forma de criar e tratar a Sarah mudou. Mas, é por causa de mim. Eu preciso me encontrar, saber que rumo dar para minha vida, e uma coisa é fato, não sou mais essa adolescente que você projeta em mim, para satisfazer suas fantasias.
– Você só pode estar maluca, essa mulher está deixando você desequilibrada, isso sim. Como assim, fantasias? O jogo que brincamos quando estamos juntos, na cama ou nos momentos íntimos, é algo consensual entre nós. Agora você vem jogar na minha cara que eu me satisfaço em fantasiar as coisas com você? Mas a alegria que você fica quando a gente termina não é nada? Quando o dinheiro cai na sua conta, não é nada? Quando a Sarah vai nos melhores médicos da cidade, não é nada? Você é uma ingrata, isso sim. Sem mim, você não é nada. Quem vai cuidar de você? Você vivia chorando numa cama, reclamando da sua família e do seu ex-marido, bebendo para esquecer os problemas e as dívidas antes de me conhecer. Eu te dei a mão. Eu te tirei do buraco onde estava. E agora, eu sou o pervertido que te sufoca, muito bonito isso da sua parte.
– Eu vou cuidar de mim mesma. Eu sou capaz. E você jogar essas coisas na minha cara só me dá mais força para tomar a decisão que resolvi. Precisamos nos afastar. Agradeço tudo o que fez por mim, acho que retribuí sempre da melhor forma possível, dentro do que era esperado de mim, e você sempre disse isso, mas, agora, o ciclo se encerrou. Vamos cada um cuidar dos nossos interesses e seguirmos nossas vidas.
– Você não vai conseguir viver sem mim. Você precisa de mim. E se acha que vou aceitar isso assim, está muito enganada. Agora entendo o porquê do seu pai tratar você da forma que trata. Você não tem consideração, sentimento, carinho por ninguém. Mas, se acha que vai fazer comigo como fez com Mauro, descartando-o como um copo plástico sujo, está muito enganada, Angélica. Você sabe que posso te prejudicar, e muito.
Aquilo não levaria mais a nada. Só ficaríamos remexendo em feridas que deviam ser deixadas quietas para cicatrizarem.
– Evandro, preciso ir. Não temos mais o que discutir. – Ele ainda praguejou mais um pouco, mas não tentou me impedir.
Chamei o carro por aplicativo, e embarquei nele sem olhar para trás. Sabia que era uma decisão difícil e que eu iria arcar com as consequências disso. Mas eu também sabia que não podia continuar assim, vivendo sob a sombra do passado e da manipulação de Evandro. Com o apoio da Dra. Laura, decidi me afastar dele e me concentrar na minha recuperação psicológica. Mergulhei de cabeça nisso para colher os resultados com a maior brevidade possível.
A cada sessão, era como descascar uma cebola, revelando camadas e mais camadas de dor e sofrimento que eu havia enterrado por tanto tempo. Com a perícia Dra. Laura em conduzir o tratamento, fui me sentindo cada vez mais segura para explorar os cantos escuros da minha alma. Confessei meus medos, minhas raivas, minhas mágoas, meus defeitos. Ela me ouvia com tanta paciência e compaixão que, aos poucos, fui me abrindo e me permitindo ser vulnerável.
Mas, conforme a terapia avançava, algo estranho começou a acontecer. Senti uma conexão profunda com a Dra. Laura, uma sintonia que ia além da relação terapeuta-paciente. Admirava sua inteligência, sua gentileza e sua capacidade de me fazer sentir compreendida. Comecei a ansiar por nossas sessões, não apenas para trabalhar meus traumas, mas também para sentir aquela sensação de acolhimento e segurança que eu parecia só sentir estando ali, junto dela.
No início, isso me pareceu tão estranho e improvável, que tentei ignorar esses sentimentos. Afinal, ela era minha terapeuta, e eu, sua paciente. Mas a verdade é que precisei admitir a mim mesma que me sentia atraída por ela. Era uma atração intensa e confusa, afinal, eu nunca havia sentido aquilo, daquela forma, por nenhuma mulher, e isso me deixava dividida entre a necessidade de cuidar de mim mesma e o medo de cruzar uma linha profissional. Agora que minha mente parecia querer entrar nos eixos, meu coração vinha para bagunçar tudo. Eu sei que eu poderia tranquilamente buscar outro profissional, até indicado por ela mesma, a fim de colocar à prova meus sentimentos e minha evolução emocional, mas, como sempre, preferi correr o risco, mesmo sabendo da possibilidade muito grande de me machucar, sendo ou não correspondida. Deixei os sentimentos aflorarem, as sessões continuarem, até que chegou o dia em que era imperativo falar, pois já estava sufocada demais pelos meus próprios desejos.
Foi uma decisão dolorosa, mas necessária. E foi nesse momento que percebi que meus sentimentos pela Dra. Laura eram mais profundos do que eu imaginava. Era algo maior que desejo sexual, coisa que sequer eu sabia se realmente tinha por ela, pois até esse dia isso só era mais um pecado imperdoável que minha mãe me implantou na mente, ou, mais uma sem vergonhice para envergonhá-lo, como meu pai certamente diria. Eu sentia por ela uma admiração, um respeito, uma quase subserviência diante do poder que ela emanava, não somente como profissional, mas também como mulher, um certo poder não verbal que me deixava incomodada, instigada, e sim, molhada às vezes. Confessei meus sentimentos para ela dessa mesma forma, com essas mesmas palavras, e a conversa foi um pouco mais espinhosa do que eu esperava. Vi que ela se empertigou na cadeira, me olhou fixamente, ajeitou os óculos no rosto, e, coisa rara, começou a falar:
– Angélica, primeiramente, acho saudável você falar tudo o que passa na sua mente. Afinal, estou aqui para ouvir e te guiar no sentido de desvendar o caminho que seja mais confortável para você trilhar na sua jornada. Mas está muito claro que está passando por um período complicado da sua vida, onde ainda têm muitos problemas com seu pai que precisam ser regurgitados e resolvidos, além da relação complicada que teve com seu último relacionamento, o Evandro, sem falar de Mauro e de Sarah, que ainda mora mais com os avós que com você. A forma como as coisas foram conduzidas até hoje devem ter deixado marcas em você e no seu inconsciente que ainda teremos de trabalhar com tempo e afinco. Com isso, a carência que está sentindo e o apoio que encontrou no meu trabalho, a levou a confundir as coisas, nada mais que isso. Olha, se preferir, para se sentir melhor, mais à vontade, posso indicar um outro profissional, na mesma linha do meu trabalho, e este dará continuidade ao seu processo de recuperação, tenho certeza de que estará bem assistida.
– Não, eu não quero outro profissional, eu quero você, Laura. – Nesse momento, meus olhos lacrimejavam e eu perdi o protocolo de tratamento formal com ela. – Mas eu quero que cuide sim, terapeuticamente de mim, mas também quero que cuide de mim como mulher, assim como quero uma oportunidade de cuidar de você também. Até porque, não sei nada da sua vida, se já tem alguém, se gosta ou não de mulheres, estou me expondo aqui, talvez ao ridículo, mas foi aqui mesmo que aprendi que temos de expor o que nos atormenta a mente, e por pior e mais absurdo que seja, trazer o assunto à baila, a fim de trabalharmos e resolvermos isso. Só estou aplicando o que aprendi com você.
– Você está confusa, só isso. Quer um copo d’água? – Levantou-se, já se dirigindo à pequena cozinha no ambiente.
– Quero sim, por favor.
Quando ela me trouxe o copo, eu pensei que ali era o momento do tudo ou nada. Ou eu perderia de vez Laura, sua companhia, e mesmo seu acompanhamento profissional, ou ganharia uma nova Laura. Levantei-me do sofá para receber o copo, e no que ela estendeu a mão, segurei firme aquela mão longilínea e macia, trouxe ela mais para perto e toquei seus lábios com os meus. Ela retesou os músculos num primeiro momento, como que fugindo do contato, mas, depois, percebi seus lábios macios e perfumados relaxarem, se entregando ao prazer do contato. Pensei ter tido uma vitória, e vibrei com isso. Porém, ela se recompôs, não esboçou um sorriso sequer, e me disse:
– É melhor que vá embora agora. – E se dirigiu à porta, abrindo-a para mim.
Não tive coragem de dizer coisa alguma. Só baixei minha cabeça e sai. A vergonha me consumia as entranhas. Sabia que tinha posto tudo a perder. Mais uma vez, meus impulsos me levaram a tomar a decisão errada. Eu, sendo eu, como sempre.
Duas semanas se passaram. Eu estava no apartamento e já tinha pedido para minha mãe ver um horário que meu pai não estivesse lá, pois eu precisava ver a Sarah, passar um tempo com ela. Minhas economias estavam minguando, mas é claro que eu não faria o que o Evandro estava esperando, que era procurá-lo pedindo ajuda em troca de voltarmos ao que éramos antes. Isso estava superado, e a Laura havia me ajudado muito com isso. Era isso ou depender de novo em partes do dinheiro do meu pai, mas isso também estava fora de cogitação. Meus vencimentos no meu emprego mal davam para as contas do apartamento e minha comida, se comprasse um par de meias, ficaria devendo. Bom, mas isso eu pensaria depois. Quando o celular piscou e a mensagem chegou:
– Tudo bem? Você não veio semana passada. Aconteceu algo? Posso marcar o mesmo horário de sempre nessa semana?
Era a Dra. Laura…
Muito empolgante
Leitura muito boa