ANSEIOS, PARTE 08

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A vida de Angélica se transformou em um pesadelo com o final de seu relacionamento com Evandro. Ele disse que não renunciaria a ela, e levou isso ao pé da letra, atormentando a sua vida até as últimas consequências. A princípio, ele a assediava apenas com ligações e mensagens ameaçadoras.  Dizia que, ou ela voltaria para ele, ou a vida dela se tornaria um inferno. Ela o ignorava, dizia que só queria que ele se afastasse para sempre e tudo ficaria como estava. Ele ainda a testava, dizendo que ela não teria coragem de denunciá-lo, ou coisa do tipo, pois ela sabia como ele era e do que era capaz. Sem resultados com ela, sua ira só aumentou e suas ações se tornaram cada vez mais perigosas e incisivas. A ameaça agora era direta e cruel: a vida de sua filha, Sarah, estava em jogo.

Evandro não se contentou mais em apenas rondar minha casa ou deixar recados anônimos. Ele passou a me enviar presentes macabros, como flores mortas ou animais atropelados, como lembretes nefastos de seu poder. As ameaças se tornaram mais específicas e mais detalhadas a cada dia, até que o terror começou a tomar conta de mim duma forma que pensei que iria enlouquecer. A escola de Sarah se tornou um local de tensão constante. Evandro a observava de longe, e só não a seguia, porque, mesmo sem eu estar falando com meu pai, este levava e buscava minha filha todos os dias. Mesmo assim, não sei de que forma, Evandro conseguia deixar bilhetes ameaçadores no armário de Sarah. A menina, antes alegre e despreocupada, agora vivia em constante estado de alerta, com medo de que algo ruim acontecesse com ela ou comigo.

Eu tentava manter a calma diante de Sarah, mas por dentro, a angústia me consumia. As noites mal dormidas se tornaram insônias terríveis, e a cada ruído, um novo pânico tomava conta de mim, medo de morrer, de alguém invadir meu apartamento, ou a casa de meus pais, pois, se Mauro conseguiu isso sem grandes dificuldades, que diria de um homem com os contatos e a influência de Evandro. Até que, não suportando mais, procurei a polícia, com receio enorme de alguma retaliação da parte daquele crápula, mas fui, mesmo com as evidências tão difíceis de coletar e enfrentando a habilidade de Evandro em encobrir seus rastros. A pouca vontade das autoridades em me ajudar também era evidente, e quando souberam, por meio do meu depoimento, que tivemos um relacionamento, pareceu ainda mais que automaticamente tudo o que eu dizia virava loucura duma mulher cheia de paranoias para extorquir dinheiro do ex-namorado rico. Deixei o Boletim de Ocorrência registrado, mas sabia que, ou agia por conta própria, ou aquela situação só se arrastaria até um final que nem mesma eu poderia imaginar qual seria.

A solidão se tornou uma companheira constante. Angélica se afastou de seus amigos e familiares, temendo que eles também se tornassem alvos de Evandro. O único que poderia talvez intervir nessa situação caótica seria seu pai, mas a última conversa deles havia sido tão indigesta, que ela preferiu tentar resolver sozinha aquilo, esticando ao máximo aquele problema, esperando que não tivesse o desfecho com o qual ela sonhava todas as noites e acordava ofegante e suada. As únicas pessoas em quem ela podia confiar eram Laura e Sarah, mas a menina também estava traumatizada com a situação, e ela havia ignorado a mensagem de Laura, não comparecendo ao consultório e nem sequer respondendo a mesma, temendo por tudo que ela imaginou que a doutora diria a ela depois da atitude impensada que ela teve agarrando e beijando a própria terapeuta.

A cada dia, a pressão aumentava sobre mim. Evandro não dava sinais de que iria desistir. Eu estava com minha vida e a da minha filha estava em jogo, e o futuro parecia incerto. Foi quando uma mensagem chegou no meu celular, perguntando dos meus planos para aquele final de semana. Era Mauro, querendo ver Sarah. Num momento de pensamentos difusos, chamei ele para ir até meu apartamento, pois queria muito conversar com ele. Ele disse que em instantes estaria lá e realmente foi. Apesar de improvável sucesso, eu precisava desabafar com alguém sobre minha situação, e contei tudo ao Mauro, desde do que fui fazer no Rio de Janeiro, até ali.

– Angélica, você deveria ter falado antes sobre isso comigo. Afinal, é a vida de nossa filha que está em jogo.

– Mauro, eu não pedi que viesse aqui para me criticar, por favor, eu já estou sob intensa pressão.

– Claro, claro, Angélica, fique tranquila, só fiz esse comentário porque também estou muito preocupado com essa situação, mas, quero que relaxe agora porque vamos resolver isso.

– De que forma, Mauro, você, melhor do que eu, sabe quem é o Evandro, vai ser complicado para eu me livrar dele.

– Aí é que você se engana, meu bem, você sabe muito bem quem é o Evandro, mas você sabe muito bem que é o Mauro? Pois é, apesar de estar casada com ele, não sabe de todos os segredos – Ele falava em terceira pessoa, como se estivesse se referindo a um ser desconhecido meu.

– Pare, Mauro, sei de todos os seus segredos, mesmos os mais escondidos.

– Não sabe não. Mas, um deles, vou te deixar descobrir. Só me deixe fazer uma ligação aqui, porque esse contato meu não responde mensagens. Sabe como é, não deixar evidências dos serviços prestados.

Angélica observava Mauro com um misto de medo e esperança. A promessa de uma solução rápida para seus problemas era tentadora, mas a maneira como ele se referia a si mesmo em terceira pessoa e a menção de um contato misterioso a deixava desconfiada, pois não era assim que ele se comportava quando ambos viveram juntos. No entanto, a desesperança e a falta de opção melhor a impulsionava a confiar nele, afinal, quem mais poderia salvá-la daquela situação?

Mauro fez a ligação e, após uma conversa curta e enigmática, que ele evitou que ela ouvisse e ainda mais, entendesse, desligou o telefone com um sorriso confiante. “Tudo resolvido, meu amor. Evandro não vai mais te incomodar. Depois, ainda preciso passar mais algumas informações, mas, como já me contou tudo o que está acontecendo, pode ficar sossegada que o assunto já está sendo tratado e será resolvido a contento.” Angélica sentiu um alívio instantâneo, mas a sensação era agridoce. Ela sabia que essa “solução” poderia ter consequências graves, mas a ideia de ter sua vida de volta e proteger Sarah a fazia ignorar qualquer sinal de alerta.

Nos dias que se seguiram, a vida de Angélica parecia ter voltado ao normal. As ameaças e o assédio de Evandro cessaram abruptamente. Não recebeu mais uma ligação, uma mensagem, nada mais de bilhetes no armário de Sarah. Uma paz nunca sentida. Seu pai também afirmou não ter visto mais nenhuma movimentação suspeita no trajeto escolar da garota. Era como se Evandro simplesmente evaporasse no ar. No entanto, a tranquilidade era aparente. Angélica sentia uma angústia constante, uma sensação de que estava sendo observada. A cada sombra, a cada ruído, ela se assustava, temendo que fosse uma nova armadilha. Pensou ser coisa da sua cabeça, e por um tempo, pareceu desfrutar de paz.

A dúvida sobre o que Mauro havia feito para resolver a situação a consumia. Ela tentou questioná-lo diversas vezes, mas ele sempre mudava de assunto ou dizia que era algo muito complicado para ela entender. A cada resposta evasiva, a desconfiança de Angélica aumentava. No fundo ela sabia o que era, mas queria uma evidência, porque a lógica de tanto tempo conhecendo Mauro não a permitia acreditar que suas desconfianças fossem plausíveis.

Um dia, enquanto buscava por alguma informação sobre o passado de Mauro, mesmo tendo certeza de saber tudo sobre ele, Angélica descobriu algo chocante: ele tinha ligações com o submundo do crime. A ficha caiu. A “solução” que ele havia prometido não passava de mais um ato de violência. Ela percebeu que havia se entregado nas mãos de um homem ainda mais perigoso do que Evandro. Mas, preferiu não remoer demais isso. A polícia não havia dado a devida atenção ao desespero dela. Mauro, afinal de contas, estava, em primeira instância, defendendo a própria filha. Claro que a curiosidade tomou conta dela. Como ele havia conhecido esses ‘contatos’? Aquele jeito um tanto afeminado dele não atrapalhava ele estar envolvido com gente tão ‘barra pesada’? Por que ele não acionou estes mesmos contatos no dia em que ela e Evandro foram até ele para literalmente arrancar Sarah de suas mãos? Compensaria, a essa altura do campeonato, obter respostas a estas perguntas?

Bom, o pior dos problemas que eu havia enfrentado até então na minha vida, aparentemente havia sido solucionado. Evandro realmente parecia ter desaparecido do mapa, e isso me dava um alívio gigantesco, além de me ensinar uma lição que eu levaria comigo para sempre: quase sempre o que nos vem de graça, ou muito barato, acaba por nos custar caro demais. Eu havia decidido comigo mesma não mais me envolver com ninguém quando a força motriz não fosse realmente o sentimento romântico. Misturar negócios com paixões não dava certo, e eu havia aprendido isso da forma mais dolorosa possível. Mauro havia me surpreendido sobremaneira. Um homem que aparentemente era um paspalho, afeminado e fraco, mostrou-se ser minha salvação nesse momento tão turbulento, ainda mais da forma como agiu para solucionar o ocorrido.

E, falando de sentimento romântico, chegara, enfim, a hora de resolver mais um entrevero que estava me incomodando. Peguei a mensagem antiga, que eu não havia apagado, claro, da Laura, me perguntando sobre a sessão, e respondi, indo para o tudo ou nada: “você não faz ideia do que minha vida se tornou nesses últimos dias, por isso não dei retorno. Mas, é claro que preciso voltar, preciso dos seus conselhos. Que dia dessa semana pode agendar um horário para mim?”

Angélica, com o coração acelerado, aguardava a resposta de Laura. As horas se arrastavam enquanto a terapeuta certamente analisava a mensagem enviada tão tardiamente. Quando finalmente chegou a tão aguardada resposta, convidando-a para uma sessão já no dia seguinte, no horário costumeiro, um sorriso tímido surgiu em seus lábios.

No dia seguinte, Angélica chegou ao consultório mais nervosa do que nunca. Não sabia o que falar, não sabia qual seria a reação de Laura, parecia mesmo uma criança que havia aprontado no colégio, e esperava o pai chegar do serviço para ser castigada. Ao adentrar a sala, sentiu um misto de alívio e apreensão. Laura a recebeu com um sorriso acolhedor, como se nada houvesse acontecido, e a convidou a se sentar.

– Angélica, estou muito feliz em te ver novamente. Sei que você passou por momentos muito difíceis e quero te ajudar a superar tudo isso, afinal, eu vi bastante progresso no seu tratamento, e seria uma pena e um desperdício você abandonar agora as sessões.

Angélica, com a voz embargada, já querendo chorar nos primeiros minutos da sessão, começou a contar tudo o que havia acontecido desde a última vez que se viram, detalhando os horrores que vivenciou com Evandro e a solução, nada convencional, que Mauro havia encontrado. Ao terminar de contar sua história, um silêncio pairou no ar. Laura observava Angélica com uma expressão complexa, misturando compaixão e admiração. Angélica enxugava as lágrimas no lencinho de papel que ela tinha à disposição no braço do sofá que se sentava, quase sufocada, aguardando as palavras de Laura.

– Angélica, você passou por uma provação muito grande. É compreensível que você tenha procurado ajuda em Mauro, no momento do desespero, mesmo que as suas intenções não tenham sido as melhores, e já sabendo que com seu pai não poderia contar em virtude da última conversa que tiveram. Também não podemos criticar seu ex-marido, afinal, a situação colocava em risco a vida da filha dele, e ele teve de lutar com as armas que tinha em mãos, fossem essas legais e aprovadas ou não. Mas, preciso te dizer que ainda me preocupo com você. Essa situação te deixou muito vulnerável.

Angélica assentiu com a cabeça, sentindo um nó na garganta. Viu que aquele momento era o de trazer o assunto à tona, já que Laura não tocou no tema desde que ela chegara ao consultório.

– E sobre nós, Laura? Tudo o que aconteceu aqui naquele dia… eu estou muito envergonhada, e não preciso te dizer que parte do meu sumiço se deve também a isso.  Pode me criticar, pode mesmo até me ofender, se isso te fizer sentir vingada por minha atitude. Eu entenderei perfeitamente até se não quiser mais me atender. Porém, eu preciso, novamente afirmar: eu não consigo tirar você da minha cabeça. Eu realmente estou apaixonada por você.”

Laura respirou fundo antes de responder. Sabia que teria de se posicionar. E sabia também que o passo que desse a partir dali, não teria como recuar mais. Fez que olhou suas anotações por um segundo, levantou a cabeça, encarou Angélica bem dentro dos seus olhos grandes e continuou:

– Angélica, desde o dia em que nos conhecemos, senti uma conexão muito forte com você. E confesso que também me apaixonei. Claro que eu prezei pela ética no seu atendimento o tempo todo, mas o fato é que eu sabia que esse momento chegaria mais cedo ou mais tarde, porque quando ambas as pessoas se atraem da forma como nos atraímos, além do mero aspecto físico, isso tem uma força que não se controla. Mas, como eu já percebi que sou a parte mais racional desse provável relacionamento, antes de irmos mais além, precisamos conversar sobre alguns pontos importantes. O primeiro é que você nunca se envolveu emocionalmente com outra mulher antes, e isso pode gerar algumas inseguranças e medos, além de dúvidas de como você vai apresentar isso para sua família, amigos e afins. Além disso, a sua história com Mauro me preocupa, pois mesmo parecendo já resolvida de sua parte, é notório que ele ainda nutre sentimentos por você e que você de certa forma gosta disso, e alimenta esse cortejo. Você precisa ter certeza de que está pronta para um relacionamento sério e que não está buscando apenas uma distração. Eu já não tenho idade de aventuras, nem emocional para ficar brincando de casinha, então, entendo seus sentimentos, mas é importante que entenda a complexidade de brincar com os meus.

Angélica, emocionada com a sinceridade de Laura, olhou nos olhos da terapeuta com um carinho e um desejo que há muito não sentia, se é que alguma vez teve tal amplitude de sentimento…

– Eu sei que tudo isso é complicado, que é algo novo, que vamos ter de enfrentar algumas barras para ficarmos juntas, eu sei de tudo isso, Laura, mas eu sinto que você é a pessoa certa para mim desde que entrei aqui nesse consultório pela primeira vez. Eu sinto uma sensação totalmente diferente quando te vejo, quando te ouço, que não senti com o Mauro, com o Evandro, e pelo que me lembro, com mais ninguém. Eu quero nos dar uma chance, porque eu sei que se a gente passar por tudo isso juntas, nada mais vai nos separar, mas preciso do seu apoio para superar tudo o que passei, e reescrever minha história.

Laura sorriu gentilmente, demonstrando um carinho quase maternal, e dessa vez, ela quem se levantou e se aproximou de Angélica no sofá.

– Eu também quero nos dar essa chance. Mas, precisamos construir essa relação com calma e respeito. E, acima de tudo, precisamos ser honestas uma com a outra. Você não sabe quase nada da minha vida, do meu passado, dos meus gostos, das minhas neuroses, você tem certeza de que está preparada para isso?

A resposta positiva de Angélica veio em forma dum beijo carinhoso e pueril nos lábios pintados de Laura, que foi se tornando mais quente e selvagem, com a receptividade da doutora. Nesse momento, o universo pareceu se comprimir duma forma a se resumir naquelas duas almas que, nuas, se entregaram voluptuosamente uma a outra no divã do consultório, se espalhando pelo sofá, e terminado, ofegantes e satisfeitas, naquele chão atapetado, como se desde vidas passadas estivessem predestinadas a se amarem.

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Olá, eu sou Ari Jr

Sou escritor, blogueiro e viajante. Ser criativo e fazer coisas que me mantêm feliz é o lema da minha vida.

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