ANSEIOS, PARTE 09

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

Mauro se encontrava sozinho naquele momento. O cigarro queimava lentamente entre seus dedos, e ele pensava o quanto poderia ser feliz para sempre na companhia de Angélica e Sarah. Era tudo o que ele queria. Apagar de vez o passado antes de conhecer Angélica, e tudo de tão errado que tinha feito até então.

Em seus devaneios, matava devagarinho, com requintes de crueldade, aquela pessoa que fizera tão mal a ele, que causara, à base de muita dor e pouco prazer, tanta desgraça em sua vida, a ponto de se pegar, vez por outra, trocando olhares com outras pessoas que entendiam com certeza o que se passava com ele. E, quando estava prestes a sucumbir, lembrava-se de tudo o que ele lera na Bíblia, de como aquilo era sujo, errado, antinatural, mas mesmo assim sua carne ainda se arrepiava, seu membro dava sinal, mostrando o quanto aquele ser havia feito mal para ele e para seus padrões de amor, carinho e prazer, destruindo sua sanidade mental.

Se o tempo voltasse e ele soubesse do que sabia ali, ele com certeza não teria deixado vivo aquele homem no qual confiava tanto, no qual tratava como um membro de sua família mais próxima, e deitava-se no peito e no ombro nos momentos de dúvidas e dores, achando que seria acalentado como a um filho, um sobrinho. Porém, quando se deu conta, era apenas um objeto de desejo proibido nas mãos daquele crápula.

Ah! Se ele pudesse recomeçar do dia em que viu Angélica pela primeira vez, naquela loja de cosméticos e ficara encantado com seu sorriso de moleca, seus olhos negros bem grandes… Nesse momento ele percebeu que sua alma teria sim redenção, pois, enfim, seu corpo respondia a um estímulo puro, correto, natural, e ele sentia um desejo enorme de conhecer aquela menina, de se casar com ela, de, enfim, abandonar as aventuras escondidas em becos e esquinas mal iluminadas nas madrugadas insones.

Ela jamais poderia saber disso.

Tentando ser bem recebido pelo grupo de amigos adolescentes, começou a ter contato com os garotos mais perigosos do colégio. Trocava trabalhos escolares e colas nas provas por proteção e aceitação naquele grupo, mas logo viu que necessitaria dar mais provas de lealdade, como começar a fumar, cometer pequenos delitos e mentir quase que compulsivamente para manter as aparências de bom rapaz, apesar de tudo o que fazia. O disfarce colava. Salvo a ‘direção’ daquela organização de delinquentes, ninguém mais desconfiava que o belo e recatado Mauro era um contraventor.

Ele se orgulhava de conseguir ser quase que outra pessoa, sendo dois seres ocupando um corpo apenas. O teste final em ser mestre do disfarce foi quando se viu atraído de forma irresistível por Caio Vinícius, num dia após futebol onde se viram nus no vestiário. Ele ficou encantado com as formas de Caio, e teve certeza de que houve reciprocidade da parte do rapaz negro, com braços muito compridos e musculosos, mas, claro, isso poderia ser apenas coisa da sua cabeça. Até o dia em que ambos foram escalados para um serviço que exigiria o rosto de alguém acima de qualquer suspeita, e nestes casos, Mauro sempre era o mais indicado.

Após a conclusão dos trabalhos, ambos, eufóricos com o bom desfecho do assunto, acabaram se beijando e se amando no banco do carro mesmo. Tal como Mauro, Caio Vinicius era discreto quanto a isso pois sabia o problema que se arranjava sendo homossexual naquele meio de pseudo durões, e com isso, ambos levaram por um bom tempo aquele fogo que um causava nas entranhas do outro, sem que ninguém percebesse o que aprontavam quando se viam sozinhos. Ali, Mauro conseguiu entender que amar e estar com alguém do mesmo sexo que o seu não precisava ser sujo, nem dolorido, mas poderia ser algo possível e prazeroso.

A culpa pesada, que o tomava de assalto quase toda vez que se deitava com Caio Vinícius, ainda o assombrava, mas seu instinto acabava sendo ainda mais voluptuoso, e ele não conseguia deixar daquele vício que era o corpo daquele homem negro tão lindo e conhecedor de cada canto do seu corpo.

E assim a vida de Mauro seguia, intercalando entre morrer de amor na cama de Caio Vinícius, e de culpa, ajoelhado no chão da igreja, implorando por misericórdia. Até entrar naquela loja e se deparar com Angélica. O nome dela já dizia… era um anjo, ele se apaixonara na hora, e, enfim, por uma mulher, como ele, os pais, os amigos, todos queriam ver, torciam, e enfim, poderiam acompanhar o desenrolar duma relação genuína entre os dois. Ele canalizara todo desejo que tinha por Caio Vinícius para Angélica. Ela chegava a dizer pra ele que achava intrigante um homem de modos tão delicados e corteses ser tão afoito e agressivo na cama com ela, como se a devorasse literalmente, como se estivesse… recuperando o tempo perdido.

Ele só ria e não dizia nada, nem concordando, nem discordando. Resolveu da melhor forma o assunto com Caio Vinicius, não o procurando mais, mentindo que estava receoso de que alguém os estivesse seguindo e que precisava zelar pela moral de ambos, mesmo que isso significasse o rompimento dos dois, mesmo que temporário. Daí para engravidar Angélica foi muito rápido, e parece que aquele castelo de sonhos começou a ruir. O pai dela, que já era intragável, ficou ainda mais agressivo e ciumento com ela, mal podia olhar para Mauro que o destratava, e Mauro babando de vontade de encher a cara dele de balas e sair rindo da situação, mas ele tinha Angélica e, agora, uma criança, uma nova vida toda pela frente para trilhar novos rumos, e não poderia deixar aquilo o abalar.

Vestiu-se de novo da sua personalidade frágil e quase afeminada para encarar aquilo com a maior calma possível. Mas, após um tempo de casados com a Sarah já chamando ele de papai, Angélica esfriou duma forma incrível, o evitava na cama, mas ele suportava quieto, não queria voltar para a vida de pecado dele, nem ficar sem a Sarah, até que Angélica comunicou a separação. Foi o único dia na vida de Mauro que ele teve muita vontade de machucar sua esposa, para que ela sentisse pelo menos um por cento da dor que ele estava sentindo naquele momento. Ele a viu indo embora, levando Sarah, e não lhe restou mais nada na vida além de chorar.

E assim, absorto em seus pensamentos, acendeu outro cigarro, e viu uma chamada de um número desconhecido tocando. Como já havia sido muito comum esse tipo de ligação no passado, automaticamente, ele atendeu. A voz sequer teve o trabalho de se identificar, já foi emendando frase em cima de frase. E nem precisou, Mauro reconheceria o timbre de Evandro no meio de uma multidão tagarela, se o ouvisse…

— Mauro, você sabe quem é. Eu quero me encontrar com você. Você tem amigos influentes de um lado da moeda, mas eu também tenho do outro lado. E descobri umas curiosidades a seu respeito. Acho que nem a Angélica, nem a família dela, nem outras pessoas próximas de você, gostariam de saber quem é o verdadeiro Mauro, e o que ele fazia num passado próximo para ganhar dinheiro, não é mesmo? Também acho que você não ficaria feliz que eu espalhasse aos quatro ventos o nível de ‘amizade’ – falou cada sílaba bem compassadamente – que você tinha com o tal Caio Vinícius, ou ficaria? Sarah vai ter várias historinhas legais para contar para as amigas sobre o papaizinho dela, não acha? Eu vou te passar o local e o horário que vamos nos ver. Se tentar alguma coisa diferente, morrem Angélica e Sarah. Os meus amigos também já estão de sobreaviso para darem cabo das duas caso você não siga o que eu te disser agora. Acho que temos uns assuntos para resolver, olho no olho…

Mauro apertou o celular com força, sentindo a pressão das palavras de Evandro esmagando sua mente. A fumaça do cigarro se dissipava lentamente no ar, quase queimando seus dedos, mas ele mal percebia. As palavras de Evandro eram como um soco direto na boca do seu estômago, e a ameaça que pairava sobre Angélica e Sarah era uma faca enfiada em seu peito e ele precisava arrancá-la se quisesse viver. A última coisa que ele queria era voltar ao inferno que havia tentado, e conseguido, abandonar, mas agora a sombra de seu passado se erguia de novo, pronta para destruí-lo de uma vez por todas.

— Onde e quando? – foi tudo o que conseguiu dizer, a voz rouca, quase inaudível, refletindo o pavor que sentia.

— Mauá, às 22h. Aquele bar perto da estação. Você sabe qual é – veio a resposta, tão rápida, fria e calculada quanto a ameaça.

O que era Mauá senão um antigo ponto de encontro, um local onde Mauro se misturava com o submundo de sua antiga vida? Realmente, ele sabia de coisas que Mauro preferia que ficassem mortas lá no passado. O coração dele martelava no peito, e a sensação de desespero era incontrolável. Ele sabia que Evandro não estava brincando. O medo que sentia era real, mas, por outro lado, havia algo em seu interior que se recusava a se render sem lutar. O que mais ele perderia? Já não havia mais nada além da dor e da vergonha.

Chegando ao local, Mauro parou em frente ao bar mal iluminado de propósito. O lugar parecia deserto, e o cheiro de óleo queimado misturado com suor e fumaça de cigarro exalava de dentro. O tipo de ambiente que não aceitava mentiras, onde qualquer deslize era fatal. Evandro o esperava, sentado em uma mesa no canto mais sombrio do bar, a silhueta projetada pelas luzes fracas que piscavam intermitentemente. Não era o ambiente preferido de Evandro, ele sabia, e tudo ali destoava com o homem influente que conhecia. Ao lado dele, um copo de uísque quase vazio, mostrando que ele havia conseguido mesmo ali um bom atendimento, faltava saber se era por ter agradado ao atendente, ou por realmente conhecer quem comandava aquele boteco de fachada.

Mauro entrou, com os ombros tensos, tentando manter a postura firme, mas sentindo-se vulnerável por dentro. Cada passo parecia pesado mais, e o barulho de suas botas no chão de madeira ecoava na sala vazia.

Evandro levantou os olhos, os lábios se curvando em um sorriso dissimulado. Ele parecia diferente, mais maduro, mais calculista, mas ainda assim o mesmo homem que um dia tivera o poder de manipular tudo ao seu redor, e que usara disso para tirar a pequena Sarah de suas mãos como uma mercadoria, por puro capricho de Angélica. Seus olhos fixaram-se em Mauro com uma frieza que cortava. O passado deles nunca havia sido limpo, e agora, a sujeira vinha à tona.

— Você chegou. Estava esperando – Evandro disse, sem emoção, enquanto gesticulava para que Mauro se sentasse à sua frente.

Mauro não sabia o que esperar. O nó na garganta apertava cada vez mais, mas ele sabia que precisava encarar isso de frente. Sentou-se, seus olhos não ousando desviar dos de Evandro.

— O que você quer de mim? – Mauro tentou esconder a raiva crescente, mas sabia que não poderia mais manter o controle por muito tempo.

Evandro riu baixinho, uma risada curta e sem humor.

— O que eu quero? Eu só quero que você se lembre de quem você realmente é, Mauro. E você também precisa lembrar que há coisas sobre você que eu sei, e que, se eu quiser, posso destruir tudo o que você construiu. Não se engane, você ainda é o mesmo cara, só se veste com outra máscara. E essa vida de ‘bom moço’, de ‘pai exemplar’, não engana ninguém, muito menos a mim. E eu não gostei nada de você usar seus amiguinhos do passado para me afastar de Angélica quando ela estava quase voltando para mim. Você atrapalhou meus planos e eu costumo ferir quem faz isso comigo.

As palavras de Evandro foram como facas afiadas, e o sangue de Mauro ferveu. Ele sentiu a raiva transbordando, mas ainda lutava para manter o controle. Evandro continuava, insidioso:

— Eu soube de tudo, Mauro, sem necessitar de grandes investigações. Eu hoje sei quem você realmente é. A verdade está aqui, à vista de todos, e você vai ter que lidar com isso, contanto para elas quem é o Mauro por debaixo dessa casca, ou as pessoas que você mais ama vão pagar.

Mauro não pôde mais segurar. A raiva se transformou em uma explosão. Ele levantou-se, a cadeira caindo para trás, e avançou sobre Evandro. O estalo de um soco ecoou pela sala quando atingiu o rosto de Evandro, fazendo seu corpo se balançar para o lado. Evandro, surpreso, levou a mão ao rosto, sentindo a dor, mas logo se recompôs. Ele se levantou com a mesma calma, e seu olhar agora estava cheio de fúria.

— Você acha que isso vai resolver alguma coisa, Mauro? Você é um fraco! – Evandro rosnou, indo na direção de Mauro com um soco que o atingiu no estômago, fazendo-o se curvar momentaneamente.

A dor foi intensa, mas Mauro não recuou. Quando se endireitou, seus olhos estavam ardendo com a fúria de quem tinha sido traído, de quem sentia a angústia de ver seu pior pesadelo se materializando diante de seus olhos.

Os dois homens se enfrentaram no meio do bar, as luzes piscando e as sombras se alongando como espectros, enquanto o confronto entre eles se intensificava. O local, que antes parecia vazio e impessoal, agora estava impregnado de tensão, e o som de socos, gritos e xingamentos tomou conta do ambiente. Ninguém intervinha, os poucos que ainda estavam no bar mantinham-se a uma distância segura, como que sabendo que aquele acerto de contas entre os dois era necessário.

Ele conseguiu agarrar Mauro pelo pescoço, apertando com força, os dedos como uma garra implacável. Mauro lutava para respirar, mas sua raiva era maior que a dor. Usou toda a força restante para empurrar Evandro para trás, e o impacto contra a mesa foi brutal. Quando Evandro se levantou, a ira em seus olhos era incontrolável. Ele partiu para a investida final, a luta de ambos se tornando uma batalha desesperada, onde o passado e as verdades esquecidas se chocavam, e a violência agora tomava conta de tudo.

Evandro mais uma vez conseguiu derrubar Mauro, e agora o castigava com socos no seu rosto. O sangue brotava abundante do nariz quebrado de Mauro, que já se via a ponto de perder as forças, mal enxergando Evando, devido ao sangue que lhe lavava a face. Virou a cabeça de lado, e num esforço final, alcançou um taco de bilhar que estava no chão, golpeando de forma certeira a cabeça de Evandro uma vez, quando ele afrouxou a mão, e numa segunda vez, quando ele tombou de lado. Tomado de fúria e adrenalina, golpeou mais uma, e mais outra, e outra, e viu Evandro silenciar, com o crânio afundado pelos golpes.

Mauro sabia o que tinha feito. Sabia das consequências que teria de enfrentar. Mas não havia outra maneira de sair dali do Mauá, ou era ele, ou Evandro vivo. Ele conseguiu que fosse ele mesmo. Mas ele sabia que os comparsas de Evandro, assim que soubessem do desfecho da conversa dele com Mauro no Mauá, iriam atrás de Mauro, ou pior, atrás de Angélica e de Sarah. Ele tentou lavar o rosto na pia do bar, a dor e o adormecimento eram muito fortes, mas ele não podia se demorar ali.

Ao sair do ambiente, alguns se aproximavam do corpo inerte ao chão, que logo estaria em toda a mídia, com a notícia da morte do poderoso Evandro num boteco suspeito. Mauro saiu, pegou seu aparelho celular, mas o mesmo tinha a tela toda trincada da briga. Mesmo assim, tentou ligar, ele acendeu, mesmo sem mostrar nenhuma informação. Era tudo ou nada… discou o número que sabia de cor… chamou uma, duas, três vezes e, na quarta, uma voz do outro lado…

— Você de novo, Mauro? O que aconteceu agora?

— Sei que não deveria te ligar, mas fiz uma merda enorme. Matei o Evandro. Os amigos dele vão vir atrás de mim, da Angélica, da Sarah. Preciso que nos ajude. Preciso me esconder até a poeira abaixar, e preciso que protejam as duas. Converse com o pessoal aí pra mim.

— Você não muda né. Não quer nada com nossa Irmandade, mas, quando a barriga dói, você corre aqui. E vem pedir justo pra eu defender a vida da Angélica? Sua ousadia é grande mesmo hein, Mauro.

— Você sabe que não tenho outra opção. Não tenho pra quem correr agora, e não posso perder um minuto. Conversa aí pra mim, pelo amor de Deus.

Silêncio do outro lado… nada se ouvia…

— Alô, responde, você ainda está por aí? – Mauro estava desesperado, andando sem rumo.

— Pegue um carro de aplicativo e vá até onde eu te disser agora, chegando no local indicado, você receberá novas informações para que suma temporariamente do mapa. Já vamos colocar alguém cuidando da Sarah. Mas, você vai dever essa pra Irmandade e vai ter de pagar, um dia ou outro. E para mim, então, terá uma dívida eterna.

— Ah! Muito obrigado. Você sabe que vou pagar sim. A ajuda que está me dando não tem preço. Obrigado mesmo, eu gosto demais de você.

— Eu também, Mauro. Muito mais do que você imagina.

£££

A sala de Laura é acolhedora e decorada com livros, almofadas macias e luzes suaves. Angélica está sentada no sofá, com o celular na mão, paralisada, olhando para o aparelho com os olhos arregalados. Laura, que havia saído da cozinha, entra com duas xícaras de chá, mas percebe imediatamente a expressão de Angélica.

— O que foi, meu amor? Você está pálida.

— Evandro… Ele… ele morreu, Laura.

— O quê? Como assim? O que aconteceu?

— Não sei muitos detalhes ainda. Só sei que ele foi encontrado morto num bar… Alguém me mandou uma mensagem anônima dizendo que foi algo violento, mas que, enfim, o assunto foi definitivamente resolvido.

Laura imediatamente segura as mãos de Angélica, tentando acalmá-la, pois já vê seus olhos marejarem.

— Calma, calma. Vamos tentar entender isso. Você disse que a mensagem foi anônima?

— Sim. Mas… algo me diz que Mauro está envolvido nisso, pois a mensagem diz pra eu ficar calma pois eu e Sarah estaremos seguras.

— Mauro? Por quê?

— Eu sei que Evandro estava atrás dele. Depois que Mauro fez contato com sabe-se lá quem, e esse alguém simplesmente afastou Evandro de mim e todas as ameaças cessaram, ele sempre ameaçava se vingar do Mauro de alguma forma… E agora isso?

Laura permanecia séria, tentando manter a calma e raciocinar com lógica para entender tudo o que estava acontecendo:

— E o Mauro? Ele já te ligou?

— Não. E é isso que mais me preocupa. Eu sei que ele faria qualquer coisa para nos proteger, mas, Laura, e se ele… e se ele realmente…

— Ei, não vamos pular para conclusões precipitadas, vamos analisar com frieza. Pode ser que ele nem estivesse lá, você é quem começou a achar isso e já fez disso um fato.

— Não sei. Mas se ele fez algo… os amigos de Evandro… Laura, eles não vão deixar isso barato. Evandro tinha muitos contatos na polícia, com empresários… Você sabe, já te contei a força-tarefa que ele levantou no Rio de Janeiro para tirar Sarah das mãos do Mauro. Isso não está me cheirando bem e não vai ficar assim, o dito pelo não dito.

— Isso é verdade. O círculo de Evandro é perigoso, exatamente por ser poderoso. Você acha que eles sabem de você? De Sarah?

— Não sei. Pelo menos Evandro me parecia muito discreto com nossa relação. Mas, agora, ele estando morto, eles podem ir atrás de qualquer pessoa próxima ao Mauro. Isso me assusta.

Laura colocou firmemente a mão no ombro de Angélica, transmitindo confiança:

— Ok, então temos que agir agora. Você e Sarah não podem ficar desprotegidas. Você não vai sair daqui de casa, é um lugar seguro pelo menos temporariamente. Ninguém ainda desconfia de que estamos juntas, então, jamais pensariam em te procurar aqui.

— E o Mauro? Não posso deixá-lo sozinho.

— Primeiro, precisamos encontrar um jeito de entrar em contato com ele. Você já tentou ligar no celular dele? Ele deve saber que você está bem, se ele realmente tem todos esses contatos e informantes que você me diz que tem. E depois… – fez uma pausa, pensando – precisamos entender o que está acontecendo.

— E se ele estiver fugindo, Laura? Ou pior… se os amigos de Evandro já o encontraram? Não quero nem imaginar o que podem fazer com ele se colocarem as mãos no Mauro. Apesar de tudo, ele é o pai da minha filha.

— Calma, Angélica, não vamos pensar no pior ainda. Vamos focar no que podemos controlar. Pegue seu celular. Vamos tentar ligar para ele ou para alguém que possa saber onde ele está.

Angélica pega o celular com as mãos trêmulas e começa a procurar o número de Mauro. Laura observa, sua expressão preocupada, mas determinada.

— Enquanto isso, o que acha de eu ligar para um contato meu na polícia? Eles podem nos dar alguma informação sobre o que aconteceu com Evandro e se o Mauro está envolvido.

Angélica é enfática em sua negativa:

— Não, Laura! Nem pensar. Acabei de te dizer que Evandro conhecia todos na polícia. Você acha que a polícia vai mesmo ajudar? Nunca, entre achar o Mauro e acabar com ele numa calada da noite e nos ajudar, com certeza eles optarão por silenciar Mauro. A única pessoa que sei que poderia fazer algum contato de confiança mesmo lá dentro seria meu pai. Mas eu não vou falar com ele.

Laura suspirou, observando a teimosia de Angélica enquanto processava a situação. Ela sabia que não seria fácil convencer o pai de Angélica a ajudar. O relacionamento entre os dois era distante e cheio de mágoas, e Laura sabia disso e dos porquês. Mas Laura também sabia que, entre todas as opções, ele era o único que poderia ter o peso necessário para lidar com uma rede tão poderosa de influências como a de Evandro, pois conhecia as entranhas dessa rede.

— Eu sei que você não quer falar com seu pai, Angélica, e entendo completamente o porquê. Mas a situação é maior do que nossas preferências ou feridas do passado. Ele pode ser a chave para descobrir o que está acontecendo e proteger você e Sarah.

Angélica balançou a cabeça, abraçando o celular contra o peito, como se isso pudesse protegê-la de qualquer decisão difícil.

— Laura, você não entende. Ele vai me humilhar, vai jogar tudo isso na minha cara. Ele nunca me apoiou em nada! Ele tentou a vida toda me culpar por não servir aos desejos lascivos dele, mesmo que eu jamais pudesse ser culpada de algo. Ainda mais agora, se ele imaginar o que somos… Ele vai me culpar, vai dizer que eu fiz escolhas erradas…

— Então deixa que eu falo com ele. – Laura interrompeu, firme.

Angélica ergueu os olhos, surpresa.

— O quê? Você vai ligar para o meu pai? Ele vai te odiar só por tentar… Esqueça isso, vamos pensar em outra solução.

— Ele já me odeia, Angélica. Ele só não sabe disso ainda. – Laura respondeu, com um sorriso triste. – Deixa que eu faço isso. Eu vou explicar o que está acontecendo. É melhor ele ouvir de mim.

Angélica hesitou, mas no fundo sabia que Laura estava certa. Relutante, ela entregou o celular para Laura, que discou o número do pai de Angélica. A linha chamou algumas vezes até que ele atendeu, sua voz grave e ríspida ecoando do outro lado.

— Quem é? – ele perguntou sem rodeios, mesmo sabendo de quem era aquele número.

— Senhor Alencar, aqui é Laura. Sou terapeuta da sua filha, Angélica. Precisamos conversar sobre algo muito sério que ocorreu hoje e onde precisaremos de sua ajuda.

Houve uma pausa do outro lado da linha antes que ele respondesse, ainda mais seco.

— Já sei quem você é. A mãe da Angélica comentou que ela estava se tratando das paranoias dela. O que está acontecendo agora?

Laura respirou fundo, mantendo a calma. Ela explicou de forma objetiva o que sabiam sobre a morte de Evandro e o possível envolvimento de Mauro, destacando os riscos que Angélica e Sarah poderiam estar correndo.

O pai de Angélica ouvia em silêncio, mas quando Laura terminou de falar, ele respondeu com um tom carregado de desprezo.

— Isso é típico da minha filha. Sempre se metendo em confusão. Já disse mil vezes para ela se afastar desse Mauro, mas ela nunca me ouve, pelo contrário, fez uma filha com ele. Depois, foi se prostituir com esse Evandro, em troca de dinheiro e vida boa, de novo indo contra tudo o que eu ensinei pra ela e exemplo que dei. E agora está aí, de novo, precisando que eu limpe a bagunça dela. Mas, como terapeuta dela, você deve saber disso até em mais detalhes do que eu, estamos perdendo tempo nessa conversa.

Laura sentiu o sangue ferver, mas manteve o controle. Sabia que, ou chamava a conversa para o franco confronto, ou ele passaria o tempo cutucando-as com o passado que ele recriminava de Angélica.

— Senhor Alencar, com todo o respeito, Angélica não está pedindo sua ajuda. Eu estou. A situação atual envolve vidas, inclusive, talvez a segurança da vida de Sarah, que é sua neta, que vive aí na sua casa, e que não tem nada a ver com a atitude dos adultos que a rodeiam. Assim, na pessoa de alguém que ama sua filha e quer protegê-la, venho pedir que nos ajude a conseguir informações do Mauro e dos próximos passos que Evandro daria dentro da polícia.

Do outro lado da linha, a respiração dele pareceu parar por um segundo.

— Como é que é? Não entendi bem… ama minha filha, em que sentindo? – ele perguntou, sua voz se tornando ainda mais fria.

Laura manteve o tom firme.

— O senhor ouviu bem. Eu não sou apenas a terapeuta da sua filha. Sou também a namorada dela. Estamos juntas há algum tempo, e é por isso que estou aqui pedindo sua ajuda. Porque eu a amo e quero garantir que ela e Sarah fiquem seguras.

Um silêncio carregado tomou conta da ligação. Laura podia sentir a tensão do outro lado da linha. Finalmente, ele explodiu.

— Isso só pode ser uma piada de mau gosto! – ele rugiu. – A Angélica já é uma decepção enorme com tudo o que ela já fez e eu já te disse, e agora você vem me dizer que é a… namorada dela? Ela não tem vergonha de conseguir, numa existência só, ser mãe solteira, biscate e agora… – emudeceu, buscando talvez um termo melhor para o qual veio em sua mente – É isso que ela virou? Uma ofensa para a nossa família com essa sem vergonhice?!

Laura cerrou os punhos, mas respondeu com a mesma serenidade. Sabia que ir para um confronto de ofensas só pioraria a situação.

— O que quer que o senhor pense sobre isso, não importa agora. O que importa é a segurança dela e de sua neta. O senhor vai nos ajudar ou não?

Ele riu, mas não havia humor algum na sua voz. Somente um desdém, uma ironia cáustica.

— Não vou me prestar a isso. Angélica é responsável pelas escolhas dela, mesmo só tendo feito escolhas erradas desde a adolescência. E, francamente, não estou surpreso com o que me disse. Foi só mais uma decepção, uma vergonha atrás da outra. Não espere nada de mim. Peça a ela que não me procure, que não fale mais comigo, que esqueça que já teve pai um dia. Eu morri hoje para ela.

Antes que Laura pudesse responder, ele desligou. Ela ficou parada, segurando o celular, o som da chamada encerrada ainda ecoando na sala. Quando olhou para Angélica, viu lágrimas escorrendo por seu rosto.

— Eu te avisei… – Angélica murmurou, sua voz quebrada.

Laura sentou-se ao lado dela e a abraçou, apertando-a com força.

— Ele pode ser quem for, mas não vamos deixar que isso nos paralise. Ele já te causou muito mal, já te abriu muitas feridas, mas esse tempo acabou, Angélica. Nós vamos achar uma solução. Juntas. E vamos trazer a Sarah pra cá. A filha é sua, e você, esteja na condição em que estiver, é quem tem de cria-la. Você me ama?

— Muito, Laura, a cada dia mais. Seu apoio e seu carinho têm sido importantíssimos nesses dias tão cinzentos. Você tem sido minha luz no final do túnel.

— Quer vir morar comigo então?

— Isso é um pedido de casamento?

— Se prefere algo mais formal… – Sorrindo, ajoelha-se na frente de Angélica. – Angélica, meu amor, quer se casar comigo e vivermos pra sempre juntas?

Angélica chorava copiosamente nesse instante. Os dias não estavam sendo fáceis, e tudo estava desembocando naquela hora. A morte de Evandro, nas condições que ocorreram, o sumiço de Mauro, isso sem contar esse passado obscuro dele. Essa relação tão complicada com seu pai, e até o sentimento tão forte que nutria por Laura, tudo a assustava.

Mesmo assim, por mais antagônico que isso fosse, encontrava-se em um momento tão feliz, diante duma mulher tão incrível, realizada duma forma que nunca tinha experimentado. Não havia outra resposta a ser dada:

— Eu aceito, meu amor. Eu aceito ser sua mulher para sempre. Vamos nos casar imediatamente.

Laura também chorava nesse momento. Levantou-se, tocou de leve o rosto moreno de Angélica, e se beijaram apaixonadamente, como que isolando-se do mundo cruel lá de fora.

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

Olá, eu sou Ari Jr

Sou escritor, blogueiro e viajante. Ser criativo e fazer coisas que me mantêm feliz é o lema da minha vida.

Últimas Postagens

Anúncios

0 0 votos
Article Rating
Inscrever-se
Notificar de
guest
2 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Ruy
Ruy
1 mês atrás

Você escreve muito bem, para quem gosta de ler, coisa rara hoje em dia, mas mesmo as sim, quem dera Deus me desse este dom a mim.

Ronaldo Filho
Ronaldo Filho
1 mês atrás

Só melhora! O enredo está intrigante e este capítulo nos entregou uma peça fundamental para o tomo próximo da história!

Get Curated Post Updates!

Sign up for my newsletter to see new photos, tips, and blog posts.

Subscribe to My Newsletter

Subscribe to my weekly newsletter. I don’t send any spam email ever!