O silêncio na casa de Alencar era ensurdecedor. Apesar de ser um lugar que sempre ecoava com a rigidez militar e as palavras duras de um homem que nunca soube expressar amor de forma saudável, naquela noite, o vazio parecia ter tomado conta de cada canto. Alencar estava sentado em sua poltrona preferida, a mesma onde ele costumava ditar as regras da casa, onde ele julgava e condenava as escolhas de Angélica. Agora, ele estava sozinho, com um copo de uísque na mão e um olhar perdido no vazio.
Ele não conseguia tirar da cabeça a conversa que teve com Laura. As palavras dela ecoavam em sua mente como um martelo batendo incessantemente: “Eu não sou apenas a terapeuta da sua filha. Sou também a namorada dela.” Aquela revelação tinha sido o golpe final em um ego já fragilizado por anos de frustrações e desilusões. Alencar sempre acreditou que, no fundo, Angélica era uma extensão dele mesmo, uma representação de sua honra e de seus valores. Agora, ela havia se tornado tudo o que ele mais desprezava: uma mulher que desafiava suas regras, que vivia fora dos padrões que ele considerava corretos, e que, pior ainda, havia se envolvido com outra mulher.
Alencar olhou para o retrato na parede, uma foto antiga da família. Angélica era apenas uma criança, sorrindo ao lado da mãe, enquanto ele, de uniforme militar, parecia orgulhoso. Naquela época, ele ainda acreditava que poderia moldá-la à sua imagem, que ela seguiria seus passos e se tornaria a filha perfeita que ele sempre sonhou. Mas a vida tinha outros planos. Angélica havia se rebelado, havia escolhido caminhos que ele não podia controlar, e agora, ela estava vivendo uma vida que ele não conseguia compreender — ou aceitar.
Nesse momento, levantou-se da poltrona, cambaleando levemente devido ao álcool. Ele caminhou até o quarto, onde guardava suas coisas mais pessoais. No fundo de uma gaveta, ele encontrou o que procurava: uma corda grossa, daquelas que ele usava para amarrar equipamentos durante seus anos no exército. Ele segurou-a por um momento, sentindo o peso do objeto em suas mãos. Era estranho pensar que algo tão simples pudesse ser o instrumento de seu fim.
Logo voltou para a sala, arrastando a corda atrás de si. Olhou para o teto, onde havia um gancho forte o suficiente para suportar seu peso. Era irônico, ele pensou, que a casa que ele sempre controlou com mão de ferro seria o palco de sua derrota final. Ele amarrou a corda ao gancho, fazendo um nó firme, como havia aprendido a fazer tantas vezes no passado. Depois, colocou a outra ponta da corda em volta do pescoço, ajustando-a com cuidado, como se estivesse preparando-se para uma missão.
Ele fechou os olhos por um momento, tentando encontrar alguma paz, mas só conseguia sentir o vazio. As palavras de Laura ainda ecoavam em sua mente, mas agora eram acompanhadas pelas lembranças de todas as vezes que ele havia falhado como pai. Ele se lembrava das vezes que havia gritado com Angélica, das vezes que a havia humilhado, das vezes que a havia feito sentir que nunca seria boa o suficiente. Ele se lembrava do olhar de medo e desespero nos olhos dela, e sabia que nunca poderia apagar aquelas memórias.
“Eu morri hoje para ela.”
Aquelas foram as últimas palavras que ele havia dito a Laura antes de desligar o telefone. Agora, ele percebia que elas eram mais verdadeiras do que ele imaginava. Ele já estava morto para Angélica, e não havia mais volta. Ele não poderia consertar o que havia quebrado, não poderia apagar o que havia feito. Tudo o que restava era o silêncio e a dor.
Aquele homem respirou fundo, sentindo o nó da corda apertar levemente em seu pescoço. Por um momento, ele hesitou, questionando-se se havia outra saída. Mas ele sabia que não havia. Ele havia perdido tudo o que importava para ele: sua honra, seu controle, sua filha. Não havia mais razão para continuar.
Alencar deu um passo para frente, e o mundo ao seu redor desapareceu.
—
Angélica entrou na casa dos pais com o coração pesado. O ar parecia carregado de uma tristeza densa, como se as paredes soubessem o que havia acontecido. A mãe estava sentada no sofá, com os olhos vermelhos e as mãos tremendo. Quando viu Angélica, ela se levantou e correu para abraçá-la, chorando em seu ombro.
— Ele se foi, Angélica… — a mãe sussurrou, a voz quebrada. — Ele se foi…
Angélica abraçou a mãe com força, sentindo as lágrimas escorrerem pelo seu rosto. Ela olhou para a sala, onde o corpo de Alencar ainda estava pendurado, agora coberto por um lençol branco. A cena era surreal, como se o tempo tivesse parado naquele momento de dor e desespero.
— Mãe… — Angélica começou, mas as palavras pareciam presas em sua garganta. — Eu… eu não sei o que dizer.
A mãe de Angélica soltou-a do abraço e olhou para ela com olhos marejados. Ela parecia hesitar por um momento, como se estivesse lutando consigo mesma para dizer algo. Finalmente, ela respirou fundo e falou:
— Ele deixou uma carta para você. — A mãe pegou um envelope da mesa de centro e o entregou a Angélica. — Ele escreveu isso antes de… antes de fazer o que fez. Eu não li, mas ele disse que era para você.
Angélica olhou para o envelope em suas mãos, sentindo um frio percorrer sua espinha. O nome dela estava escrito na frente, em uma caligrafia firme e familiar. Ela reconheceu imediatamente a letra do pai. Com as mãos trêmulas, ela abriu o envelope e tirou a carta. O papel estava um pouco amassado, como se tivesse sido segurado com força antes de ser colocado no envelope.
Ela começou a ler, e as palavras do pai pareciam saltar da página, carregadas de uma emoção que ela nunca havia visto nele em vida.
“Minha querida Angélica,
Se você está lendo esta carta, é porque eu não tive a coragem de enfrentar você pessoalmente. Eu sempre fui um covarde quando se tratava de sentimentos, e agora, no final, eu continuo sendo. Mas eu preciso que você saiba a verdade, mesmo que seja tarde demais.
Eu sei que eu falhei como seu pai. Eu sei que eu te machuquei de maneiras que você talvez nunca consiga perdoar. Eu sei que muitos dos seus anseios, dos seus medos, das suas inseguranças, foram causados por mim. Eu fui duro demais, cruel demais, e eu não soube como te amar da forma que você merecia.
Eu sempre achei que eu estava fazendo o certo. Eu achava que, se eu fosse severo, se eu te controlasse, se eu te moldasse à minha imagem, você se tornaria uma pessoa forte, alguém que eu pudesse me orgulhar. Mas eu estava errado. Eu não te dei amor, eu te dei dor. E eu sei que isso te marcou de uma forma que eu nunca poderei consertar.
Eu também preciso te contar algo que eu carreguei comigo por todos esses anos, algo que eu nunca tive coragem de admitir, nem para mim mesmo. Eu te abusei, Angélica. Não fisicamente, mas emocionalmente, psicologicamente. Eu te usei como uma válvula de escape para minhas próprias frustrações, minhas próprias inseguranças. Eu te vi como uma extensão de mim mesmo, e eu te tratei como se você fosse responsável por todas as minhas falhas. Eu te culpei por coisas que nunca foram sua culpa, e eu te fiz sentir que você nunca seria boa o suficiente.
Eu sei que isso explica muito do que você passou. Eu sei que isso explica por que você sempre buscou aprovação, por que você sempre se sentiu inadequada, por que você sempre teve medo de ser quem você realmente é. Eu coloquei esses anseios em você, e eu sei que isso te machucou profundamente.
Eu não espero que você me perdoe. Eu não mereço seu perdão. Mas eu preciso que você saiba que eu estou arrependido. Eu estou arrependido por tudo o que eu fiz, por tudo o que eu disse, por tudo o que eu não fui capaz de fazer. Eu estou arrependido por não ter sido o pai que você merecia.
Eu espero que, um dia, você possa encontrar a paz que eu nunca consegui te dar. Eu espero que você possa se libertar das correntes que eu coloquei em você e viver a vida que você merece, com amor, com felicidade, com liberdade.
Eu te amo, Angélica. Eu sempre te amei, mesmo que eu nunca tenha sabido como mostrar isso. E eu espero que, onde quer que eu esteja agora, eu possa finalmente te ver feliz, sem mim.
Com todo o meu arrependimento,
Seu pai.”
Angélica terminou de ler a carta com as mãos tremendo e as lágrimas escorrendo pelo rosto. Ela sentiu uma onda de emoções conflitantes: raiva, tristeza, alívio, dor. Ela olhou para o corpo do pai, coberto pelo lençol, e sentiu um nó se formar em sua garganta.
— Ele… ele sabia… — Angélica sussurrou, quase sem voz. — Ele sabia o que ele fez…
A mãe de Angélica se aproximou dela, colocando uma mão em seu ombro.
— Ele estava sofrendo, Angélica. Ele carregava essa culpa há anos. Ele nunca soube como lidar com isso, e no final… ele não aguentou mais.
Angélica balançou a cabeça, sentindo uma mistura de alívio e dor. Ela sabia que o pai nunca havia sido capaz de expressar seus sentimentos em vida, mas agora, na morte, ele havia finalmente sido honesto com ela. E, de alguma forma, isso a fez sentir um pouco de paz.
— Eu… eu não sei se consigo perdoá-lo… — Angélica disse, sua voz trêmula. — Mas eu entendo. Eu entendo o que ele estava tentando dizer.
A mãe de Angélica a abraçou novamente, e as duas ficaram ali, chorando juntas, enquanto o peso da carta e das palavras de Alencar ecoavam no ambiente. Laura chegou pouco depois, abraçando Angélica com força, tentando de alguma forma consolar as duas enlutadas apenas com sua presença. Ela não disse nada, sabendo que nenhuma palavra poderia minimizar a dor que Angélica e sua mãe estavam sentindo naquele momento. Ela apenas segurou sua amada, deixando-a chorar, enquanto o silêncio da casa gritava como que acusando a ausência de Alencar.
No funeral, Angélica olhou para o semblante do pai pela última vez. Ela sabia que ele nunca a havia entendido, que ele nunca havia aceitado quem ela era. Mas, no fundo, ela ainda o amava. E, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto, ela se aproximou do caixão, colocou a carta de despedida do pai em seu peito, e sussurrou uma última despedida:
— Eu te perdoo, pai. E eu espero que, onde quer que você esteja, você finalmente encontre a paz que nunca teve em vida.
—
O tempo havia sido cruel, mas também um mestre silencioso. O nome Mauro parecia ter sido apagado da vida de Angélica e Sarah, substituído por um vazio que ninguém ousava preencher. Até aquele dia.
A notícia veio como um soco no estômago. Um caso policial estampava a manchete do jornal local: “Operação desmantela facção criminosa e prende líder conhecido como Medina”. Angélica não teria dado importância se não fosse pela descrição. Um homem que parecia familiar, traços endurecidos pelo tempo, mas inconfundíveis. Seu coração acelerou. Era Mauro.
Sarah, agora uma adolescente questionadora e sagaz, viu o impacto da notícia na mãe e não demorou a pressioná-la por respostas. “Esse é o meu pai, não é?” A pergunta ecoou pela sala como um trovão. Angélica, que sempre evitara o assunto, sentiu-se encurralada. Sabia que não poderia fugir para sempre.
A investigação revelou que Mauro, ou melhor, Medina, havia se tornado uma peça-chave dentro da Irmandade. Ele não era mais aquele homem submisso e frágil. Agora, era alguém respeitado – ou temido. Sua fuga, anos atrás, não fora apenas para salvar a própria pele, mas para se reinventar. E, nesse processo, ele havia deixado para trás qualquer vestígio do Mauro que Angélica conhecia.
Sarah não aceitou o silêncio da mãe. “Eu preciso ver ele. Preciso entender. Me leva pra falar com ele, mãe, você não pode me negar isso” Contra todos os instintos maternos, Angélica sabia que impedir a filha de procurar o pai só aumentaria a fissura entre elas. E tudo que ela não queria é repetir com Sarah o que seu pai havia feito com ela. Com uma mistura de medo e necessidade, ela conseguiu a informação que precisava. Mauro estava preso, aguardando julgamento. Se Sarah queria respostas, teria que obtê-las dentro de uma sala de visitas fria e impessoal.
O encontro foi carregado de tensão. Mauro, sentado do outro lado do vidro, segurou o telefone com mãos que antes haviam embalado Sarah, agora calejadas pela vida que escolhera. “Você cresceu tanto”, murmurou, a voz embargada.
Sarah o encarou, tentando encontrar vestígios do pai que ela imaginava, nas poucas lembranças que tinha dele. “Por que você foi embora?”
Ele fechou os olhos por um instante. “Para protegê-la. Para me proteger.”
Angélica, que havia se mantido em silêncio, finalmente interveio. “Você se tornou tudo o que sempre odiou. Como pôde?”
Mauro suspirou, o peso dos anos recaindo sobre ele. “Eu não podia ser o homem que você queria que eu fosse, Angélica. Eu tentei. Mas quando tudo desmoronou, a única coisa que me restava era sobreviver.”
A conversa foi interrompida pelo tempo limite. Sarah saiu com mais perguntas do que respostas, e Angélica com um peso que não conseguia identificar. Mauro ainda fazia parte daquele mundo sombrio, mas ele ainda era o pai de sua filha.
Quando o julgamento chegou, Mauro recebeu uma proposta: delação premiada em troca de uma sentença reduzida. Seu depoimento poderia acabar de vez com a Irmandade, mas a traição significaria sua morte caso voltasse às ruas.
Angélica e Sarah estavam na sala do tribunal quando Mauro se levantou para falar. Pela primeira vez em anos, sua voz carregava algo além do medo e da submissão. Ele tinha uma escolha: continuar sendo o fantasma do passado ou tentar um futuro, mesmo que incerto.
Mauro escolheu delatar. Em troca, responderia em liberdade, mas dentro de um programa de proteção a testemunhas, o que significava mudar de nome, rosto e cidade. Antes de partir, ele fez um último pedido a Angélica e Sarah: que fossem com ele.
Angélica suspirou, sentindo um misto de nostalgia e tristeza. “Não posso, Mauro. Minha vida está aqui, e estou feliz com Laura. Sarah também precisa de estabilidade.”
Mauro assentiu, aceitando a resposta com olhos marejados. “Eu entendo.” O momento foi silencioso, um adeus sem promessas, mas com a certeza de que, de alguma forma, ele sempre estaria presente na memória de ambas.
A despedida foi derradeira. Mauro desapareceu do mundo que conheciam, tornando-se um nome esquecido em documentos confidenciais. Mas, para Angélica e Sarah, ele sempre seria uma lembrança de um passado que moldou quem eram – e de um amor que, apesar de tudo, nunca deixou de existir.
—
O tempo passou, e Angélica e Laura seguiram construindo uma vida juntas, longe de grandes crises ou turbulências. Claro que o começo foi bem mais complicado, lidando com críticas da opinião alheia, a própria mãe de Angélica que era completamente contra aquela união, devido suas convicções religiosas, mesmo não dizendo isso explicitamente, nunca chamava as duas para irem visitá-la, e preferia sempre tratar com a filha longe da presença de sua namorada. Laura, tanto por personalidade como por formação acadêmica, era sensata, ponderada, e sempre soube como acalmar as tempestades internas de Angélica, assim, as duas estabeleceram uma rotina serena, cheia de pequenos momentos de felicidade genuína. Tudo parecia encaminhar para uma família completa e feliz de três mulheres, afinal, sua filha já era uma mocinha. Porém, a calmaria se mostrou passageira, pois um novo problema começava a surgir, e dessa vez, ele tinha o nome de Sarah.
Agora perto dos seus 16 anos, Sarah começava a mostrar sinais de inquietação. Sua relação com Angélica, antes baseada na cumplicidade duma criança dependente da mãe, ainda mais após a morte do avô, tornava-se cada vez mais distante. As perguntas sobre seu pai nunca cessaram completamente, mas agora vinham acompanhadas de um comportamento cada vez mais arredio, como se ela não ter pai fosse uma responsabilidade direta de Angélica. Laura argumentava, em momentos de maior tensão entre mãe e filha, que isso era assim mesmo, que os adolescentes passam por essa fase de afirmação da identidade própria e questionamento da identidade e autoridade dos pais, que era só Angélica não se importar que isso acabaria. Chegadas tarde em casa, mentiras inocentes que começaram a se tornar frequentes, um novo grupo de amigos que Angélica mal conhecia e que Sarah blindava para que isso não acontecesse mesmo. O fato era que havia algo errado naquelas atitudes da sua filha.
Foi então que veio a primeira chamada inesperada. Um número desconhecido no telefone de Angélica. Quando atendeu, seu coração disparou com a voz do outro lado da linha.
— Dona Angélica? Aqui é do hospital central. Sua filha Sarah sofreu um acidente e precisamos que venha imediatamente.
O chão pareceu sumir sob seus pés. Laura, que observava a reação da companheira, segurou sua mão com força.
— Vamos agora mesmo. — Laura disse sem hesitar.
Ao chegarem ao hospital, a verdade começou a se desenrolar. Sarah havia sido encontrada desacordada em um beco, sinais de entorpecentes em seu sangue e hematomas que indicavam uma possível briga. As respostas vinham a conta-gotas, mas uma coisa era certa: Sarah estava envolvida em algo perigoso. Algo que Angélica temia estar ligado, de alguma forma, ao passado sombrio de Mauro.
E assim, os anseios de Angélica voltavam a assombrá-la. O ciclo, que ela achou ter encerrado, estava apenas começando novamente.
FIM
A série “Anseios” é uma obra profundamente envolvente que aborda temas complexos como família, respeito e a busca pela retidão. A narrativa é habilmente construída, explorando as dinâmicas familiares e os desafios pessoais de maneira sensível e realista. Cada parte da história oferece uma visão profunda das lutas internas dos personagens, destacando a importância de fazer o que é certo e manter os laços familiares. A escrita é cativante e provoca reflexão, tornando “Anseios” uma leitura obrigatória para aqueles que valorizam histórias sobre moralidade, família e respeito.
Vc se prende nessa escrita muito bom parabéns tio
Sem palavras!
Cada leitura uma surpresa.