ANSEIOS

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“Enquanto viver aqui nessa casa, debaixo do meu teto, comendo da minha comida, terá de me respeitar, e às regras que eu decidir.” – Ouvi isso tantas vezes do meu pai que perdi as contas. Era como um mantra, declarado todas as vezes que eu fazia algo que não estava em sua cartilha de educação militar. Não me refiro a coisas graves, estou dizendo de chegar 15 minutos mais tarde que o previsto do cinema, ou colocar uma saia dois dedos acima do que ele julgava decente, ou uma cor de batom ou esmalte diferente das quais ele entendia ser ‘coisa de moça direita’. E não tinha o que se discutir. Nunca me bateu, acho que também porque sempre obedeci, mas qualquer sinal de insubordinação da minha parte, a punição era palavras severas de censura, apelo emocional, ‘faço tudo para você, e assim que me retribui’, privação de amor, ‘nem eu nem sua mãe vamos te amar se continuar agindo assim’, e conforme fui crescendo, a chantagem financeira, ‘não verá um centavo meu mais na vida por ser essa péssima filha para nós.’

Vontade de sumir dali sempre tive, e buscar apoio na minha mãe não era uma alternativa, pois ela, religiosa ao extremo, tinha como lei maior o respeito cego e a submissão bovina ao marido, sob pena de ser fustigada por ele e castigada por Deus. Essa vontade de jogar tudo para o alto só aumentou quando arrumei meu primeiro emprego, vendedora numa loja de cosméticos, claro que, sob a censura radical do meu pai, que dizia que a filha dele não precisava trabalhar naquela idade, como a esposa dele nunca trabalhara, e jamais necessitou de nada material que ele não pudesse suprir. ‘Mas pai, o senhor mesmo diz que por causa do meu jeito, não me dará mais dinheiro, preciso aprender a ganhar com meu próprio suor.’ Foi a gota d’água para ele me ofender verbalmente de várias formas e dizer que por ele, eu faria o que bem entendesse, só não contasse com ele para mais nada, e nem pedisse a ajuda dele quando eu quebrasse a cara, coisa que fatalmente iria acontecer. Eu me mantive obediente, mas não renunciei ao meu emprego que além de me render uns trocados para uma pseudo independência, me distraía a cabeça, me tirava daquela masmorra mental que tanto me consumia. E me proporcionou conhecer Mauro.

No começo, achei ele tímido, cheguei a desconfiar ser homossexual, primeiro, por ele mesmo estar indo escolher a tinta de cabelo que a namorada usava, depois pelos modos educados e delicados, coisa que eu não via no modelo masculino que tinha em casa. Atendi-o e fiquei curiosa por aquele homem tão diferente do homem que eu conhecia, e mesmo dos poucos moleques que namorei, se podemos chamar de namorar aqueles encontros fortuitos para encenar mamãe e papai, médico e paciente, tudo sob uma aura de terror na possibilidade do meu pai saber que eu fazia isso. Pois na semana seguinte, Mauro reapareceu, pedindo apenas uns produtos de cuidados pessoais, mas, já foi me abordar direto, sentindo-se, certamente, mais à vontade para ser atendido por alguém já conhecido. E assim foi, nas semanas subsequentes, até que, eu dando falta da tinta de cabelo, comentei que já estaria na época duma nova compra a fim de manter a cor e o brilho, quando ele me disse que não estavam mais juntos, que aquilo estava causando muita dor pra ele, coisa da qual me apiedei, e acabei aceitando um convite dele para sair. Dali para eu descobrir o que era ter um homem diferente ao meu lado, foi um pulo, ou alguns pulos, se é que me entendem. Escondi o quanto pude de meus pais o romance, sabia que meu pai estranharia o estilo dele, e que se eu contasse para minha mãe, ela diria no mesmo minuto a ele, assim, fui levando paralelamente o assunto até não mais poder…

– Estou grávida.

– Como assim, filha, você nem namora.

– Namoro sim, mãe, e já faz algum tempo. Mas não o apresentei a vocês porque conheço o pai.

– Vai conhecer melhor agora então, filha.

Já tiveram desinteria de tanta ansiedade? Pois é, foi no estado que meu pai me encontrou quando começamos a falar da minha gravidez. A menor ofensa que ouvi é que era a vergonha da família por ser mãe solteira. As demais, prefiro poupar vocês de saberem. Até que, cansada daquilo, cedi, ‘solteira, então, não, vou conversar com o Mauro e iremos nos casar’, ele de certa forma remediou, reclamando que sequer tinha visto uma vez na vida o sujeito que agora seria seu genro, que isso era uma desonra, que ele jamais sonhou em passar por isso, e tal e coisa. Casamo-nos, para formalizar nosso ato, mesmo eu sabendo que meu pai apenas engolia Mauro, mas nunca gostou dele por causa daquele jeito calmo demais, submisso demais. Jeito que, com o tempo, e com o nascimento da Sarah, mais se acentuou. Ele cuidava dela mais que eu, todo carinhoso, completamente o oposto do meu pai, quase feminino, e isso, dia após dia, foi também me incomodando, o sexo foi ficando mais raro, com menos interesse de minha parte, e ele, não reclamava, não exigia, não me subjugava, simplesmente aceitava passivamente, como eu via e odiava minha mãe aceitar, para ele, era como se só existisse nossa Sarah, mas não, eu existia, eu tinha desejos, eu tinha anseios, eu precisava de que aquele homem preenchesse uma lacuna masculina nunca preenchida desde que eu me entendia por gente, até que um dia o copo transbordou:

– Mauro, quero me separar de você.

– E a Sarah? Eu não posso ficar sem ela.

– Você não vai ficar, ela sempre será sua filha. Mas eu não consigo mais viver com você.

– Você é desumana em me separar da minha única riqueza, minha filha. – E desatou a chorar.

Pensei nesse dia que meu pai fosse passar mal. Sua tristeza nos olhos, seu desapontamento comigo eram tão brutais que ele nem precisou xingar ou esbravejar como sempre fazia. Apenas disse que meu caso não tinha mais jeito, que eu era a vergonha da família, uma chaga profunda na sua alma que ele iria carregar para o resto da vida, além duma filha que engravidara sem ser casada à época, agora, mãe solteira. Ao mesmo tempo, suponho ser a única vez que o vi demonstrar um mínimo de carinho por mim. ‘Continua, ainda assim, sendo minha filha, não posso te abandonar. Volte para casa, e traga Sarah, nós cuidaremos dela como cuidamos de você, somente tentando não errar onde errei com você.’ Sim, ele, infinitamente mais homem e másculo que Mauro, não teve grandes dificuldades em dobra-lo e fazer com que ele visse a pequena menina muito esporadicamente, apesar de eu saber de amigos em comum que ele vez por outra chorava nos bares, maldizendo o dia que me conheceu, que eu era a fonte de todas as amarguras que ele já passara na vida, e que a única alegria que eu dei a ele, Sarah, ele mal podia ver, senão com autorização daquele milico maldito, como ele se referia a meu pai. Uma sina da qual vez por outra ainda me culpo, mesmo sabendo não ser a principal responsável por nada do que acontece na vida dos outros, apenas na minha.

Porém, mais velha, menos tolerante às regras do pai, resolvi sair de casa, me mudar. Como era de se esperar, uma nova avalanche abateu-se na família. ‘Você mal lava suas calcinhas, muito menos as compra. Como cuidará de si e de uma criança, morando num cubículo e comendo miojo toda noite?’ A língua ferina do meu pai me chicoteava com força e precisão, mas, mais uma vez, mesmo sem afrontá-lo diretamente, me mudei, com a cara e a coragem, apenas desistindo de levar Sarah comigo, que ficou aos cuidados dele e de minha mãe, ela, que, numa das poucas vezes que sentou-se ao meu lado e conversou como uma amiga, e não como uma progenitora submissa e crente, me mostrou sobre como seria melhor para Sarah se ela ficasse. Mergulhei no trabalho, e em dívidas, mas aluguei e mobiliei meu apartamento, algo que era apenas para eu ostentar para os amigos o status de morar sozinha e não depender dele, como meu pai afirma até hoje. A vida assim segue seu curso.

Hoje, devaneando sobre tudo o que me abateu até agora, olhando para o teto desse apartamento, o ar-condicionado ligado, eu jogada na cama, pensando em quanto terei de vender esse mês para me alimentar minimamente, e pagar todas as despesas de móveis e utensílios que comprei, me sinto vencedora. Respondi por todos meus atos até então, fossem estes bons ou ruins, desagradei algumas pessoas importantes na minha vida, mas agradei tantas outras na mesma intensidade. Sei que para cada dia, o seu mal, como o Mestre Jesus ensinou, e assim, pensando em tudo isso, vou sonhando em como eu queria ter um homem com a masculinidade do meu pai, o carinho e o cuidado do Mauro, mas que me deixasse livre como sou hoje, pois a prisão e a castração que sofri por muitos anos me criaram cicatrizes e uma casca protetora tão espessa que não consigo que mais ninguém a quebre. Nesse momento chega um “oi” no meu celular, uma pessoa que conheci há pouco no meu mundo corporativo. Homem muito agradável, traços sérios, mais velho, mas bem-humorado.

– Sabe a conversa que tivemos, das dificuldades que está para cobrir todos os carnês que assumiu para mobiliar o apartamento, fiquei pensando nisso, e queria ajudar de alguma forma. Posso te dizer no que estou pensando?

– Como assim? Explique melhor…

ARI JUNIOR, UBERLÂNDIA, 03 DE AGOSTO DE 2024.

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Olá, eu sou Ari Jr

Sou escritor, blogueiro e viajante. Ser criativo e fazer coisas que me mantêm feliz é o lema da minha vida.

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Marcelo Cappelletti
Admin
7 meses atrás

A personagem principal parece ter agido de maneira precipitada em várias situações. A rigidez do pai e a submissão da mãe criaram um ambiente difícil, mas ela talvez tenha buscado independência de forma impulsiva, sem considerar as consequências.
Apesar das dificuldades com o pai, que impôs regras rígidas, e do relacionamento complicado com Mauro, que não supria todas as suas necessidades, a personagem não encontrou um meio-termo.
O respeito entre gerações parece ter se perdido, e a busca por liberdade resultou em mais desafios. Talvez, um pouco mais de diálogo e compreensão de ambas as partes poderia ter evitado tantos conflitos.

Ruy Barbosa Naciel
Ruy Barbosa Naciel
Responder para  Marcelo Cappelletti
7 meses atrás

Muito bom, o Ary tem uma semelhança, na sua narrativa, que me lembra muito o Álvares de Azevedo, interessante!

Rodrigo Fidalgo
Rodrigo Fidalgo
Responder para  Ruy Barbosa Naciel
7 meses atrás

Concordo

Roberto Santos
Roberto Santos
7 meses atrás

O Dom é algo surreal e você têm!
literatura envolvente que proporciona atenção em seu conteúdo.

Ana Cristina Goulart
Ana Cristina Goulart
7 meses atrás

Para a época ela foi muito adiante . Porém fez aquilo mtas pessoas se importam em ser livres e buscar seus anseios. Viver sobre o jugo amargo antigo é o mesmo que não tentar ser feliz .

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