O teatro tem o poder de revelar o que a sociedade insiste em esconder. E poucos autores fizeram isso com tanta ferocidade quanto Nelson Rodrigues. Neste final de semana houve a reestreia de “Bonitinha, mas Ordinária, ou Otto Lara Resende” no Teatro de Contêiner, em São Paulo, e isso não é apenas um evento cultural – é um convite para encararmos, mais uma vez, o retrato cruel (e ainda tão atual) de uma sociedade que se vende, que se corrompe, que sorri em público e apunhala pelas costas. Escrita em 1963, a peça escancara a hipocrisia de um Brasil que, décadas depois, continua se reconhecendo na mesma miséria moral.
“Bonitinha, mas Ordinária” conta a história de Edgard, um homem que, depois de trabalhar por 11 anos na companhia de Heitor Werneck, se vê obrigado a se casar com a “bonitinha” Maria Cecília, uma moça de família supostamente respeitável, mas que esconde um passado de promiscuidade. O enredo se desenrola em meio a chantagens, falsa moralidade e a exposição de uma elite que se apequena diante do dinheiro e das aparências.
O que choca não é a trama em si, como aconteceu na sua estreia, mas o fato de ela ainda ser tão familiar. Nelson Rodrigues, com seu olhar de cirurgião social, corta até o osso e mostra que, por trás das máscaras de virtude, muitas vezes só há interesse e podridão. Se em 1963 isso já era verdade, hoje parece até mais explícito.
Se substituirmos os personagens da peça por figuras contemporâneas, o texto não perde força, mostrando que, apesar da exibição de novas roupagens, o vício permanece. Os Edgards de hoje são os políticos que vendem discursos morais de incorruptibilidade enquanto desviam milhões e se locupletam do dinheiro suado do contribuinte; as Marias Cecílias são as figuras públicas que pregam autoaceitação mas editam cada curva do corpo para atraírem os mais incautos; e os pais dela, que a obrigam a se casar para manter as aparências, são os empresários que compram a tudo e a todos, burlam as leis, humilham as pessoas, e depois lavam a reputação e a consciência com doações ínfimas para obras de caridade e para ONGs suspeitas.
A sociedade continua ‘bonitinha’ nas redes sociais – cheia de frases de efeito, poses de virtude e hashtags de amor e justiça –, mas ‘ordinária’ nos bastidores, onde o dinheiro e o poder ditam quem merece ser poupado e quem deve ser sacrificado. Nelson Rodrigues já sabia: o brasileiro adora um fingimento.
Por que, apesar de tanto tempo de sua escrita, essa peça ainda nos choca? Certamente é por ela não permitir que a plateia saia ilesa. Enquanto muitas obras contemporâneas tentam agradar, apelando para o politicamente correto, “Bonitinha, mas Ordinária” esfrega na nossa cara o que preferimos ignorar. Não há heróis aqui – só pessoas reais, com suas fraquezas e canalhices. E ver isso dói. Constata-se que numa época em que o discurso fácil de “lado A vs. lado B” domina o debate público, Nelson nos lembra que a corrupção moral não tem partido. Ela habita o ser humano – especialmente aquele que se acha acima dela.
A reestreia dessa obra não é só uma homenagem, entre tantas já feitas, ao gênio rodriguiano. É um teste. Quem sairá do teatro incomodado? Quem vai rir nervosamente, reconhecendo nas entrelinhas os próprios pecados? E quem, como muitos dos personagens da peça, vai fingir que não é com ela?
Nelson Rodrigues não escreveu para entreter. Escreveu para cutucar a ferida. E, mais de 60 anos depois, a ferida ainda sangra. Se isso não é grandeza literária, não sei o que é.
Que a plateia de hoje tenha coragem de olhar no espelho e ver cada ruga, cada mazela, cada vinco no rosto que tem e precisa ser analisado. Afinal, como dizia o próprio Nelson: “Toda unanimidade é burra.” E toda hipocrisia, ordinária.