O NOVIDIOMA E A LINGUAGEM NEUTRA

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

Terminei ontem de ler “1984”, de George Orwell. Um livro com leitura pesada, tensa, mas extraordinário. Eu poderia aqui facilmente fazer uma resenha sobre ele, mas, esta, seria apenas mais uma num mar de impressões e interpretações feitas para esse clássico, desde seu lançamento em 1949. Por isso, escolhi uma análise de uma parte da leitura. Claro que mesmo fazendo algo assim, darei alguns “spoilers” para quem ainda não o leu, mas, para quem estiver nessa situação, recomendo que a mude imediatamente.

Para entrarmos no mundo de “1984”, escolhi falar da relação entre o conceito de Novidioma, descrito no livro 1984 de George Orwell, e a tentativa de implantação da linguagem neutra atualmente. Mesmo eu sabendo que é um tema complexo, pois envolve uma análise profunda sobre poder, controle da linguagem e questões sociais, resolvi me arriscar em mostrar o meu conceito sobre essa correlatividade. Para começar, vamos definir: no romance distópico de Orwell, o Novidioma é uma forma de linguagem artificial criada pelo regime totalitário do Partido para controlar o pensamento e as ações das pessoas. Essa nova língua é uma tentativa de diminuir a possibilidade de pensamento subversivo, uma vez que palavras que poderiam expressar ideias contrárias ao regime são eliminadas ou modificadas. A imposição do Novidioma é uma ferramenta poderosa de controle social, uma forma de restringir a liberdade mental por meio da manipulação da linguagem.

Por outro lado, o conceito de linguagem neutra, recentemente debatido e defendido por algumas pessoas, principalmente dentro de círculos progressistas e de esquerda, tem o objetivo de evitar o uso de gêneros no discurso, em um esforço para tornar a linguagem mais inclusiva, especialmente para pessoas não binárias, trans e outras identidades de gênero que não se encaixam nas categorias tradicionais de “masculino” e “feminino”. Em vez de usar palavras que indicam gênero, como “amigos” ou “alunos”, a proposta é utilizar termos neutros como “amigues” ou “alunxs”. A intenção declarada por trás dessa proposta é garantir que todos se sintam representados e incluídos na comunicação.

A tentativa de implantar a linguagem neutra e o conceito do Novidioma, apesar de suas diferenças em objetivos e contextos, compartilham uma semelhança importante, e é isso que quero destacar: ambos buscam, de alguma forma, modificar o uso da linguagem para gerar um impacto direto no pensamento coletivo e individual, porém, a princípio, tendo cada um dos grupos, intenções distintas e antagônicas. No caso do Novidioma, a modificação da língua é feita com o propósito de controlar as ideias das pessoas e reduzir a capacidade de pensamento crítico, tornando a subversão ou a revolta contra o regime mais difícil. Ao eliminar palavras que poderiam ser usadas para expressar ideias contra o regime, o Partido cria um cenário em que o pensamento dissidente se torna quase impossível. O Novidioma, assim, age como uma ferramenta de controle social e psicológico.

Já em outro prisma, a linguagem neutra, em sua proposta de inclusão e respeito às identidades de gênero não binárias, visa romper com as normas históricas de um sistema de gênero que tem sido associado a hierarquias sociais e desigualdades. A intenção de tornar a linguagem mais inclusiva e acessível pode ser vista como uma tentativa de corrigir injustiças sociais, permitindo que pessoas que não se identificam com os gêneros binários se sintam representadas. A crítica que muitos fazem à linguagem neutra, no entanto, é que ela pode ser imposta de maneira artificial, resultando em uma linguagem que, para alguns, pode parecer estranha ou difícil de ser aplicada de forma natural no cotidiano. Vemos isso na resistência das pessoas ditas “comuns” em sequer tomar conhecimento da existência dessa linguagem. Ao contrário do Novidioma, que é imposto com o intuito de eliminar possibilidades de resistência, a linguagem neutra é vista por seus defensores como uma tentativa de melhorar a comunicação e tornar a sociedade mais justa, mas pode ser questionada em termos de sua eficácia na transformação real das condições sociais e na inclusão genuína. Cabe a nós individualmente, analisar e julgar a eficácia e as intenções dessa investida na mudança do linguajar.

A crítica de que tanto o Novidioma quanto a linguagem neutra são formas de imposição linguística não é infundada. Ambos os processos envolvem um certo controle sobre a língua e a maneira como as pessoas se comunicam. No entanto, enquanto o Novidioma claramente se dispõe nas páginas do romance a suprimir a liberdade de pensamento e subordinar a língua a um regime totalitário, a linguagem neutra busca promover a inclusão e a igualdade, ainda que suas abordagens e efeitos sejam debatidos, e devam mesmo ser. É importante considerar que, enquanto o Novidioma é uma construção para oprimir, a linguagem neutra visa empoderar e expandir as possibilidades de expressão.

Para concluir, chegamos ao resultado de que a principal diferença entre as duas situações está na intenção e no contexto. O que está correto? Qual será o futuro no caso da imposição dessa nova linguagem, mesmo sendo em nome duma liberdade inclusiva? O que o passado, com a lição do Novidioma, nos ensina sobre isso? A reflexão buscando a resposta para essas perguntas sobre esses dois fenômenos pode nos ajudar a entender o papel da linguagem na construção da realidade social e política, destacando como o uso da língua pode tanto oprimir quanto libertar.


Esta publicação também está disponível no jornal O Democrata, na edição do dia 15/02/2025, na página 06.

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

Olá, eu sou Ari Jr

Sou escritor, blogueiro e viajante. Ser criativo e fazer coisas que me mantêm feliz é o lema da minha vida.

Últimas Postagens

Anúncios

5 2 votos
Article Rating
Inscrever-se
Notificar de
guest
1 Comentário
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Marcelo Cappelletti
Admin
26 dias atrás

Rapaz, esse mundo Nutella tá insuportável! 😂 Daqui a pouco, se eu sorrir, vou ser cancelado por ofender os banguelos. Se eu pentear ou cortar o cabelo, estarei praticando um ato de opressão contra os carecas. E nem vou entrar no mérito de usar óculos, porque posso estar ridicularizando quem tem visão perfeita!
Brincadeiras à parte, o texto do Ari traz uma discussão séria e bem fundamentada sobre linguagem e controle social. Mas é aquilo, né? No ritmo que as coisas vão, logo vamos precisar pedir autorização pra falar qualquer coisa, senão o Grande Irmão dos Ofendidinhos nos cancela! 🚨😂
Só a mérito de informação, quantos % da população quer linguagem neutra mesmo???

Última edição 26 dias atrás por Marcelo Cappelletti

Get Curated Post Updates!

Sign up for my newsletter to see new photos, tips, and blog posts.

Subscribe to My Newsletter

Subscribe to my weekly newsletter. I don’t send any spam email ever!