O que acontece quando a fé se transforma em servidão? ‘O Rebanho’ (dirigido por Małgorzata Szumowska) é um filme perturbador que expõe, com imagens quase oníricas e um clima de tensão sufocante, os horrores de uma comunidade religiosa isolada, liderada por um homem que manipula devoção e medo para sustentar seu poder. Através da perspectiva de Selah (Raffey Cassidy), uma jovem criada nesse culto, o filme desvela os mecanismos da obediência cega e a violência patriarcal disfarçada de divindade. Mais do que um thriller psicológico, a obra é um retrato alegórico de como sistemas de controle se perpetuam, seja em seitas, seja em estruturas sociais tradicionais.
O Rebanho” acompanha um grupo de mulheres e crianças que vivem sob o domínio de Shepherd (Michiel Huisman), um líder carismático que se autoproclama messias. A narrativa segue Selah, uma adolescente que começa a questionar as regras absurdas do culto, como a proibição de falar com homens externos ou a aceitação da poligamia forçada. A fotografia gelada e a trilha sonora inquietante reforçam o ambiente de isolamento e opressão, enquanto o filme constrói uma crítica mordaz à naturalização da violência de gênero em nome da fé.
Shepherd não é apenas um líder espiritual; é um tirano que usa a linguagem da salvação para justificar abusos. Suas pregações cheias de metáforas bíblicas e promessas de um paraíso futuro servem para anestesiar a autonomia das mulheres. O filme mostra como a devoção é distorcida: as seguidoras são ensinadas a enxergar humilhação (como a divisão entre ‘esposas’ e ‘filhas’) como prova de eleição divina. Em uma cena chocante, uma mulher que ousa desafiar Shepherd é punida com o ostracismo, e as outras a veem como ‘impura’, uma dinâmica comum em cultos reais, onde a culpa é internalizada pelas vítimas.
O roteiro não trata a fé como inerentemente maligna, mas expõe como ela pode ser instrumentalizada por figuras autoritárias. A obediência é vendida como virtude, e a dúvida, como pecado. Selah, porém, representa a semente da resistência: seu despertar para a realidade é gradual, como um luto pela ilusão que lhe foi roubada.
Shepherd não governa apenas pelo discurso religioso, mas pela masculinidade tóxica. Ele controla os corpos das mulheres; determina quem menstrua, quem pode engravidar, quem merece castigo. Sua figura é a síntese do patriarcado: um homem que se coloca como intermediário entre o humano e o divino, garantindo privilégios absolutos. O filme é eficaz ao mostrar a cumplicidade involuntária das mulheres nesse sistema; umas vigiam as outras, repetindo os mesmos dogmas que as oprimem, num ciclo de violência normalizada.
A ambientação florestal, que é ao mesmo tempo idílica e claustrofóbica, reflete a dualidade do culto: promessa de liberdade, mas prática de aprisionamento. Enquanto as cenas de ritual (como o banho coletivo ou o parto) têm um ar quase ritualístico, a câmera nunca romantiza a comunidade. Pelo contrário: expõe a podridão por trás da fachada de pureza.
Selah é a personificação da transição entre a submissão e a consciência. Sua relação com Shepherd, inicialmente filial, quase adoradora, aos poucos se transforma em desconfiança, especialmente após eventos traumáticos (como a morte de uma das mulheres). O clímax do filme, sem revelar spoilers, é uma metáfora potente para o colapso de estruturas opressoras: o momento em que a vítima enxerga o algoz como ele realmente é: um homem frágil, não um deus.
Seu silêncio inicial, que antes significava obediência, torna-se recusa. E é significativo que o filme opte por um final aberto: a libertação física não apaga o trauma, mas é o primeiro passo para romper o ciclo.
‘O Rebanho’ não é um filme fácil. Sua narrativa deliberadamente lenta e seu visual surreal podem afastar espectadores à procura de respostas simples. Mas é justamente essa ambiguidade que o torna tão potente. Ao evitar didatismos, a diretora nos força a confrontar perguntas incômodas: Quantos Shepherds existem no mundo real? Quantas mulheres são ensinadas a confundir opressão com amor? Em uma era onde líderes fundamentalistas ainda mobilizam massas, o filme funciona como um alerta e também, como no caso de Selah, um grito de libertação. A religião, quando usada para dominação, não salva ninguém; só perpetua rebanhos.

09 de agosto de 2025 – página 07