– Na hora em que eu puxar o dourado na flor d água, você bate com força na cabeça dele, para eu trazê-lo para nossa canoa, combinado? – Mamãe ouvia com atenção as instruções do pai, e já empunhava o remo com as duas mãos.
Mamãe simplesmente odiava ter de auxiliar meu avô nas pescarias dele. Mas não tinha como refutar; ela era a filha mais velha, e invariavelmente era a escolhida por ele para o serviço mais pesado de pescar o sustento da família. Dos sete filhos que teve só o sexto foi um menino. E ainda tinha problemas mentais. Ele às vezes praguejava dessa sorte, dizendo que não teve um moleque em cinco chances, e quando teve, nasceu “assim”. Minha avó o censurava por isso, dizendo que a vontade de Deus para eles era aquela, e só restava a eles se conformarem com isso.
Se hoje os pais ainda conseguem exercer um mínimo de autoridade sobre os filhos, imaginem há aproximadamente sessenta anos atrás? Se Pedro Antônio fosse um homem mirrado, esquálido, já teria o respeito da filha mais velha. Agora imaginem um descendente de português, de mais de um metro e oitenta de altura, músculos esculpidos no trabalho árduo da pescaria e da criação de gado dos patrões, no auge dos seus trinta e poucos anos? Não era só respeito, era pavor mesmo das mãos enormes e nem sempre delicadas do velho o sentimento causado em minha mãe. Dessa forma, nada mais a fazer que manejar o remo e acertar com força a cabeça daquele dourado que quase não cabia na canoa frágil deles.
E assim, após mais uma manhã de pescaria, Pedro Antônio remava até sua casa, uma fazenda que beirava o Rio Grande, o rio que divisa os estados de Minas Gerais e São Paulo. Mamãe o acompanhava. Ao chegar, vovó separava os peixes mais nobres dos quais vovô levaria ao mercado informal para vender, e gostava de cozinhar as ovas dos peixes, para comer como aperitivo, o que, anos depois, expliquei pra minha mãe que ela comia nada mais nada menos que o famoso caviar, onde ela me respondeu: “Puxa, eu até gostava, mas não era tudo isso não, eu ainda preferia as cabeças dos peixes cozidas com farinha, o nosso famoso pirão de peixe.”
Após isso, no período da tarde, após algumas cachaças já consumidas, Pedro Antônio ia para suas obrigações dentro da fazenda que tomava conta. Nesse dia específico, tinha um burro xucro pra ele amansar. O patrão queria dá-lo de presente à filha, e ninguém melhor que Pedro Antônio para executar essa tarefa nada fácil. O processo era lento e doloroso para ambos, mas depois que o velho entregava o animal já domesticado ao dono, ele mesmo garantia que o patrão, sua esposa e mesmo sua filha poderiam montar no animal sem medo de serem derrubados do burro.
À noite, com várias caninhas na cabeça, ele vinha pelo caminho, às vezes calçado duma bota surrada, ou um chinelo, mas na maioria das vezes descalço mesmo (mamãe se lembrava da grossura anormal dos seus calcanhares, com certeza devido a esse fato). Avisava que estava chegando em casa por gritar a plenos pulmões como se estivesse arrebanhando o gado, e várias ruas antes da sua casa todos já sabiam que ele estava por perto. Chegava, mexia com as crianças, conversava com a vovó, num volume extremamente alto, alguns chegavam a pensar que estavam discutindo, mas, qual o que, era só o álcool descontraindo o cérebro. Falava alguns palavrões e era censurado por vovó, lembrando-lhe das crianças em volta. E nesse clima jantava, bebia mais um pouco, lavava os pés e ia deitar-se no quarto, dividido apenas por uma cortina, do local onde todos os outros, inclusive mamãe, deitava-se.
Porém Pedro Antônio não ficou um vovô velhinho, daqueles que eu como netinho caçula da sua filha fiquei aos pés ouvindo suas histórias. Não cheguei sequer a conhecê-lo, pois quando ele morreu com seus quarenta e seis anos, mamãe ainda estava cuidando dos seus três primeiros filhos, e eu sou o sétimo. Todas as minhas “lembranças” dele foram passadas por mim por minha mãe e sua irmã mais nova. E isso me causou uma profunda impressão. Essa coisa de tradição oral sempre me fascinou, em se tratando da minha família então, muito mais. Junte-se a isso minha vontade de escrever (mal, mas o que vale é o esforço) e o resultado foi que, quando comecei a “brincar” de ter um blog com uns textos aleatórios, quis ter um pseudônimo. Alguns podem perguntar o porquê de se ter um pseudônimo, e daí eu explico que isso remonta às minhas primeiras leituras. Via que Fernando Pessoa era o rei dos pseudônimos, Nelson Rodrigues já foi Suzana Flag, Chico Buarque já foi Julinho da Adelaide, e tantos outros. Isso me fascinava, era como se fosse um álter ego. Pensei: vou ter um pseudônimo como escritor, mas, qual nome escolherei? Na hora me veio uma ideia: nada melhor que um pescador pra ser um contador de histórias, além de homenagear, mesmo sem ter conhecido em vida, meu avô. Pronto, escolhi Pedro Antônio.
Espero que o velho Pedro Antônio me inspire para que as suas histórias narradas aqui por mim, além das tantas outras que o próprio cotidiano nos dá, agradem ao público tão seleto e exigente desse site, pois, de que valem tantas histórias guardadas num baú, sem cumprir seu objetivo real e final, que é o de alegrar, inspirar e amenizar o dia a dia tão áspero do nosso povo, pois, parafraseando Chico Buarque, “e a gente vai amando, pois também, sem um carinho, ninguém segura esse rojão”.