ZEFINHA E O TUCUNARÉ

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O silêncio reinava absoluto naqueles cafundós. Ouvia-se apenas o manso murmurar das águas. Ele sentou-se na frágil canoa, e foi se afastando daquela margem. Mal se podia ver a outra margem. Os menos informados diziam mesmo ser aquele rio uma amostra grátis do mar, devido sua pujança. Excetuando-se que a água não era azul, e sim acinzentada, pelo barro do fundo, e por não se produzirem ali ondas, todo o mais lembrava sim o Atlântico.

Lembrava-se da voz de Josefa, companheira. Ou, Zefinha, como sua mãe a chamava, cuspindo sempre que pronunciava seu nome, pela falta dos dentes na boca. “Não vai hoje, olha o tempo, é claro que vai chover, além do mais, assim não se pesca, sabe disso melhor que eu, homem.” Mas como ela mesma disse; ele era homem, desde quando iria dar bola, e pior ainda, se sujeitar à vontade de mulher? Ela que cuidasse de não deixar a brasa do fogão apagar, que de noite teriam tucunaré ensopado na janta. Que picasse bem a cebola, o coentro, que deixasse o feijão com caldo bem grosso, isso sim era de sua preocupação, não onde, quando e com que tempo ele pescava. Qual o que? Ela que olhasse seu tamanho, sua barba, sua mão grossa, suas cicatrizes e julgasse se ele precisava mesmo de cuidado. Precisava era de paz, era de sossego, e de cachaça…

Olhou o garrafão que trouxera consigo; pela metade. Não iria se demorar, conhecia muito bem onde os peixes arriavam, era ali que iria jogar sua isca, nunca errou, não erraria hoje. Não se permitia errar. Desde o dia em que levou com o remo do pai na maçã do rosto com tanta força que o dente pulou naquele mesmo rio e nunca mais se achou. Aquilo doeu tanto que ele lembrava e ainda doía. Nunca mais errou o lugar da pescaria, nunca mais deixou de trazer o peixe pra casa. O velho orgulhava-se de seu método de “fabricar um homem de verdade, não uma mulherzinha pra ficar correndo grudado na saia da mãe.” Virou mais um gole da cachaça, ardeu-lhe a língua, lavou o buraco daquele dente perdido, aliviou-lhe as lembranças do pai ausente que sempre exigia o máximo do ‘homenzinho da casa’.

A canoa descia o rumo da corrente do rio sem maiores percalços. Olhou o fumo, a faca, a palha. Jurara a Zefinha que não mais fumaria, que mania besta a dela de ficar vendo na televisão que aquilo matava. O que mata é fome, o que mata é o bicho barbeiro, a cascavel venenosa do mato, a jaguatirica faminta de noite. Fumo não mata, dá só uma sensação de relaxamento, de paz. Não tinha coisa melhor depois da pescaria, ou do duro dia da roça de mandioca e feijão, que se sentar na frente do galinheiro, debulhar uma espiga, e enquanto as frangas ciscavam, acender um palheiro, beber um pouco e esperar o sol morrer de leve. Umas manias bestas daquela mulher. Mas pra ela parar com aquela aporrinhação, disse que não fumaria. Agora, sozinho, pescando e pensando, que mal haveria em dar umas baforadas?

O tempo fechou ainda mais, o relâmpago cortou o céu escuro, iluminando-o. Logo choveria. Só sentia pelo cigarro que se apagaria. Dane-se a pescaria, já não mais o importava. Olhou de novo o garrafão… quase dois dedos abaixo de onde estava quando entrou na canoa. Pensou por um momento estar num local desconhecido do rio. Jamais, conhecia tudo ali. Foi um pequeno esquecimento apenas. Aquele declive era mais que normal, um braço do caudaloso corpo d’água. O efeito era bom da pinga, não sabia se era só sua mente, ou a canoa que balançava e rodava junto com o curso da água. Lembrou-se de novo do velho, dizendo que ele não prestava nem pra matar uma galinha, os filhos morreriam de fome e vermes, se um dia dependessem dele. A Zefinha dizia que queria conhecer São Paulo, que ele nunca saía de lá, parecia um bobo na caverna. Bobo? Ele? Quem era ela pra falar assim? Prometera a ela não fumar mais nem beber pra satisfazer o capricho daquela cabocla, e ela o chamava assim, de bobo? Sua mãe nunca falou assim com o pai. Na verdade, forçava a lembrar-se de quando vira sua mãe falar qualquer coisa que fosse com o velho, não conseguia. Isso era mulher, não Zefinha. Pois ela veria só quando ele chegasse em casa. Diria poucas e boas a essa mulher, e ai dela se olhasse daquele jeito que costumava fazer. Não custava a perder a cabeça e dar-lhe um corretivo, coisa que nunca fizera, mas ela bem parecia estar merecendo. Só não voltava agora porque… Porque não sabia onde estava, a chuva já gelava suas costas. Buscou mais um gole do garrafão. Levou-o à boca, e ao erguer a cabeça, desequilibrou-se. Caiu no rio, a canoa, já na flor da água, também virou e rapidamente se afastou dele, como se quisesse se livrar daquele homem rústico, como todos em sua vida sempre fizeram. Puxou o ar e tentou bater os braços, mas só veio água com barro, e sua mente rodava, rodava muito. Abriu mais uma vez a boca, tentou gritar, chamou pela mãe, essa iria lhe valer como sempre, mas não ouviu resposta. Fechou os olhos, sentiu a barriga pesada, o ouvido foi ensurdecendo, e só via nesse momento seu pai estendendo-lhe a mão para um passeio distante…


12/07/2025 – A4

12/07/2025 – Página 7

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Olá, eu sou Ari Jr

Sou escritor, blogueiro e viajante. Ser criativo e fazer coisas que me mantêm feliz é o lema da minha vida.

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